segunda-feira, 28 de outubro de 2024

AS CRUZES DO MEL

por Francc Neto
POETA, FILÓSOFO, DESIGNER, ARTISTA PLÁSTICO



Naquele tempo, o cenário do Rio Grande do Norte me oferecia a matéria-prima e o silêncio necessário para criar. A Praia do Mel, com seus paredões de barro avermelhado, parecia guardar histórias antigas que sussurravam ao vento. Havia um curral desativado, testemunha de um tempo em que ali se criavam animais. Os murões envelhecidos e os caibros abandonados carregavam em si o peso de dias que passaram, e foi desses materiais que emergiram as oito cruzes.

Talhei com machado cada uma delas, deixando a madeira expor suas rugas, seus sulcos, seus segredos. Não havia verniz para disfarçar o desgaste, tampouco um acabamento que suavizasse a aspereza do tempo. As cruzes se erguiam em formas distorcidas, escapando da rigidez do símbolo religioso, abraçando a irregularidade como uma forma de devoção silenciosa. Em uma delas, quatro cruzes se enlaçavam, formando uma espécie de giral, uma união de dores e memórias, quase uma dança estática.

As esculturas repousaram no quintal de minha casa, como guardiãs de um espaço íntimo, e eu parti em uma viagem. Quando voltei, um mês depois, encontrei apenas o vazio onde antes elas se erguiam. Fiquei sabendo que alguém, ao passar por lá, se perturbou com a presença das cruzes, enxergando nelas algo que lhe causou mal-estar. A ignorância se aliou ao impulso destrutivo, e as esculturas foram danificadas.

Não busquei culpados. A tristeza tomou conta de mim, mas aceitei o destino daquelas peças como uma despedida forçada. Se fosse hoje, certamente não as teriam destruído, pois o tempo concedeu ao meu trabalho o peso que ele não possuía naquela época. Era o início dos anos 90, e eu já sentia que havia conquistado meu vocabulário artístico, moldado a identidade que carregaria em cada fase e proposta.

Essa história repousa na memória como o barro avermelhado da Praia do Mel: um traço firme do passado, uma recordação viva de quando minha arte era ainda mais vulnerável ao toque do mundo. As cruzes não estão mais lá, mas o gesto permanece. Talhado, não apenas na madeira, mas na linha do tempo que segui traçando, sabendo que cada criação carrega em si o risco de ser desfeita.

Praia do Mel, 1991


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quinta-feira, 24 de outubro de 2024

VII CAJAZEIRATO - Festival Estadual de Teatro de Cajazeiras Homenageia Talentos Teatrais


Nos dias 16 e 17 de novembro de 2024, Cajazeiras se transforma no epicentro da cultura paraibana com a realização do VII Cajazeirato, o Festival Estadual de Teatro de Cajazeiras, que homenageia o renomado ator, diretor teatral, cordelista, poeta e músico poli instrumentista WALTHER NUNES.
Idealizado pelo teatrólogo Francisco Hernandez e promovido pela ACATE (Associação Cajazeirense de Teatro), o evento promete ser um marco na celebração das artes cênicas da Paraíba.
Nas edições anteriores do Cajazeirato, diversas personalidades do teatro paraibano foram homenageadas, destacando o papel vital que essas figuras desempenham na cena cultural do estado.
O festival tem como missão reunir teatristas de diferentes regiões da Paraíba, proporcionando um espaço para a troca de experiências, discussão sobre a produção teatral local e a descoberta de novos talentos.
Discussão e Aprendizado
Com um enfoque na produção teatral, o VII Cajazeirato será uma oportunidade única para atores, diretores e apaixonados pelo teatro se reunirem e debaterem temas relevantes.
As oficinas, palestras e apresentações prometem enriquecer o conhecimento e a prática dos participantes, fortalecendo o cenário teatral paraibano.
Apoio à Cultura Local
O festival conta com o patrocínio do FUMINC (Fundo Municipal de Incentivo à Cultura) de Cajazeiras e a parceria com o Teatro Íracles Pires (ICA) e a Associação Afrocultural Igbàdú.
Essa colaboração é essencial para garantir que o evento seja acessível a todos e reflita a diversidade cultural da região.
Prepare-se para o Evento
Os amantes do teatro e a comunidade em geral estão convidados a participar desse grande encontro.
Marque na sua agenda: dias 16 e 17 de novembro de 2024, em Cajazeiras.
Venha celebrar a arte, a cultura e o talento paraibano no VII Cajazeirato, um festival que promete ser inesquecível!
Informações Adicionais:
Fique atento às redes sociais da ACATE e do VII Cajazeirato para novidades sobre a programação e como participar deste evento que valoriza a produção teatral e a cultura da Paraíba.
Não perca a chance de fazer parte dessa festa do teatro!

por Francisco Ernandes



sábado, 12 de outubro de 2024

A INVOLUÇÃO CULTURAL

por Rui Leitão

Armorial Ilariave. Arte Cleudimar Ferreira

O processo de involução cultural na sociedade brasileira tem avançado aceleradamente nos anos recentes. Estamos “glamourizando” a pobreza intelectual e valorizando a alienação, a falta de educação e o negacionismo. Não há mais a compreensão de que a cultura é passaporte para a emancipação de um povo. Não se estimula o encontro com a inteligência criativa. É perceptível o interesse em que percamos a consciência de nossa potencialidade. Só há um caminho para a construção de uma nação, o compromisso do Estado com a educação e a cultura. Lamentavelmente são explícitas as manifestações que demonstram falta de entusiasmo com as políticas culturais.

Estamos ingressando na “era da burrice”. Preponderam as discussões inúteis, agressivas, desprovidas de conteúdo lógico. Mas o exemplo, infelizmente, vem de cima, ao vermos lideranças se orgulhando de produzirem asneiras e recebendo o aplauso e a repetição de suas falas por um público que faz opção pelo fanatismo político. Neurônios acomodados não contribuem para aumentar a nossa capacidade cognitiva. Mas é exatamente essa a estratégia que se pretende aplicar, conduzindo-nos a destinos desastrosos.

Já não causam escândalos ou perplexidades, declarações públicas de figuras proeminentes da nossa vida social, com significados preconceituosos, sexistas, homofóbicos, machistas, anticientíficos. Os ultrarreacionários vêm ganhando espaço na grande mídia, num esforço de convencimento de suas teses perante a opinião pública. A apologia da estupidez feita sem o menor constrangimento. A burrice querendo ganhar status de sabedoria. Os que desprezam a cultura têm fé em si mesmos, são ousados e militantes., mesmo que se apresentem muitas vezes com posturas que desconhecem o senso do ridículo.

A ignorância quando se encastela numa só ideia, procura usufruir de suas próprias certezas. A fome do “regressismo” é incentivada pelos poderosos de plantão. A pregação populista da marcha à ré. Luther King dizia que “nada no mundo é mais perigoso do que a ignorância”. Na base da prepotência e da desinformação adotam técnicas de manipulação de audiências massivas, com o propósito de alcançarem seus objetivos políticos. Uma guerra onde se propõe colocar a verdade como vítima.

Razão e consciência não convivem com a involução cultural. Os promotores desse processo são especialistas em propagandear soluções fáceis para problemas complexos. Até porque não se dão ao trabalho de debater argumentos ou conceitos racionais. Desprezam os fatos para se pautarem em crenças. Aí temos que considerar que querem dar praticidade ao que diria o Rei Lear: “são cegos guiados por loucos rumo ao abismo”.

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segunda-feira, 7 de outubro de 2024

DE ÁRVORES E AMIZADES

por: João Batista de Brito

Pedra da Boca-PB, foto (acervo) Cleudimar Ferreira

Já escrevi sobre ela, e não me canso de fazê-lo. Fica ali nas areias de Manaíra, perto da calçada, de modo que, sentado na muradinha, ela parcialmente me serve de teto. Um segundo teto, posso dizer. Fica naquele trecho onde a rua Eutiquiano Barreto deságua na avenida da praia. Não tem erro.

Debaixo da castanhola de Manaíra me acomodo, toda tardinha, naquele horário em que o sol, lá por trás dos prédios, se esconde. Quem quiser me encontrar, pra um papinho leve, estou ali, inteiramente disponível.

E tenho encontrado muita gente, amigos e amigas, que passam e param pra um alô. E também pessoas que não conheço e que apreciam o recanto.

Ontem mesmo foi assim. Estava sentado na murada, apreciando a paisagem, quando vi chegar uma jovem senhora com sua cadeirinha de praia. Achei que, como muitos fazem, fosse sentar lá longe, à beira das ondas, mas não: abriu sua cadeirinha bem debaixo da castanhola e foi se acomodando. Olhou pra trás, viu que estava me dando as costas, e corrigiu sua posição: puxou a cadeira até onde eu estava, e, rindo, muito simpática, foi logo dizendo que amava aquela castanhola, e sempre que podia, sentava ali.

Admirado de encontrar uma parceira sentimental, fui falando da minha queda pela castanhola, e dela ouvi a mesma história: que adorava aquela árvore, que sempre a frequentava, e que tinha dezenas de fotos dela. Como prova, sacou o celular e foi logo me mostrando as fotos. E fiz o mesmo. Quando sugeri que seríamos, então, “rivais”, ela se apressou em apaziguar: “somos amigos da castanhola”.

Conversamos até quase o anoitecer, quase sempre sobre a castanhola, ambos admirados de como, neste final de inverno/começo de primavera, ela perde todas as folhas, e renasce como uma fênix. As folhas mortas e amarelecidas ainda no chão, e dos galhos já vão brotando novas folhas, verdinhas e brilhantes. O papo nos estimulou a fazer registros fotográficos, que não veículo por não ter autorização dessa minha nova amiga, cujo nome mal aprendi.

E, como o meu leitor talvez lembre, essa moça simpática de ontem não foi a única amizade que a castanhola me deu. Até jovens leitoras de Proust já descobri debaixo de suas folhas, amarelecidas ou verdes.

Um que numa certa ocasião me intrigou foi um morador local, que, ao me ver feliz da vida sob a castanhola, me contou uma história perturbadora, ocorrida ali, no tempo da pandemia. Residindo num edifício próximo, viu-se incomodado por moradores de rua que se abrigavam justamente debaixo da castanhola. Segundo o meu amigo, famílias inteiras passavam a noite toda ali, e mais uma parte do dia, e, comendo, bebendo e fazendo suas necessidades fisiológicas, deixavam o local uma imundície só, sem que as autoridades tomassem providências.

Pois um dia em que esses “moradores” da castanhola estavam eventualmente ausentes, meu amigo foi em casa, armou-se de um machado afiado e se dirigiu à castanhola, decidido a derrubá-la pelo tronco, achando que estava prestando um grande serviço à vizinhança e a ele mesmo.

De machado na mão, preparou-se para o primeiro golpe, e aí, sem explicação, foi tomado por um sentimento de culpa avassalador que o fez baixar os punhos... e simplesmente desistir da tarefa. Voltou pra casa acabrunhado e aguentou a sujeira dos seus vizinhos até a pandemia passar.

Ao terminar de me contar o seu relato, não resisti e lhe joguei na cara, não sei se uma acusação ou um elogio: “Você é um Raskolnikov que não usou o machado!” Tampouco sei se ele conhecia Dostoievski, mas achou a minha frase bonita, e nos apertamos as mãos, comovidos.

A minha castanhola não é a única em Manaíra, nem na orla pessoense. Mas é a que me cativou o espírito, quase tanto quanto a frondosa árvore que sombreia o jardim de minha modesta residência, e que chamo cinematograficamente de “a árvore da vida”. Mas essa é outra história...

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