quarta-feira, 12 de junho de 2024

Fogueiras acesas, apagadas e até proibidas

Damião Ramos Cavalcanti



Sonhei festas juninas da minha infância, era-nos festa de criança, tal qual como acontecia. Na verdade, o sonho é um regresso às circunstâncias vividas e desejadas. Se muito desejada, torna-se quase realizada, processa-se uma espécie de litíase que até em sonhos provoca tropeços. Não tenho certeza de que gente, que perdeu a memória, sonhe. Acho que depende da pedra que se formou nos passados idos. Pois, o sonho é um regresso aos caminhos, também aos apenas intencionalmente caminhados. Tal sonho, embora materialmente curto, era longo, nada excluía, tinha de tudo: fogo, fogos, fogueiras acesas, apagadas e até proibidas.

Repito: era-nos uma festa de criança, dona da simplicidade, tudo mais simples do que simples, contudo, com muitas cores e alegria. O santo da festa era um menino, dificilmente visto nas igrejas. Junto ao seu carneirinho, representando o primo Jesus; e ele vestido de pele de camelo, que, nos tempos de adulto, teria profetizado: “Eis o cordeiro de Deus”; disse outras verdades e, por isso, teve a cabeça cortada por Herodes, naqueles mundos, onde atualmente Netanyahu bombardeia crianças palestinas... Tudo de criança, do primo de Jesus, com roupa da simplicidade, mãe das virtudes. E é por isso que Luiz Gonzaga canta: “Ai, São João, São João do Carneirinho (...) Fale com São José (...) Peça pro meu mio dar/ Vinte espiga em cada pé”.  Também pintam o santo, enrolado de espigas, o que é a reza por maior fecundidade da safra que, além de gostosas pamonhas e canjicas, dá lagartas, sabugos para currais, cabelos e palhas para bonecas de milho.

Comprar fogos era o presente dos pais aos filhos, com o insistente aviso: cuidado para não se queimar. Lembranças tenho da vizinha Célia, noiva de João, que acendeu a pistola e segurou na mão, ao inverso, a saída da explosão. Mão sangrando, tudo parou, até o dia seguinte. Mesmo no sonho, a meninada corria pouco perigo: traque, estrelinha, chuveiro e bomba chilena. Também as casas ostentavam seu status pelo preço e diferenças dos busca-pés, bombas estrondosas, foguetões e fogos de artifício, daqueles inventados pela China, mas já fabricados pelos fogueteiros de Pilar.

Menino buliçoso gostava de mexer com fogo, pulando fogueira, cutucando as brasas ou jogando nas labaredas o resto de papel e papelão dos fogos usados. Meu pai, que não gostava de gastar, repetia que “comprar fogos é como queimar dinheiro”. Ou “solta foguetões quem pode”. A quadrilha se reservava ao fim, como se fosse divertimento de adulto. Os filhos de quem não podia ficavam de braços cruzados, admirando essas brincadeiras.

No outro dia, Alice, colega no Grupo Escolar, filha de uma das lavadeiras da cidade, no rio Paraíba, levantava-se logo cedo, ainda com o vestido sujo pela “tirna” das fogueiras para catar, pelas calçadas, ainda com sinais da noite anterior, traques ou chumbinhos que não tinham estourado, e assim guardava-os numa caixinha para modestamente festejar o seu São João. O nosso festejo continuava com os poucos fogos que sobravam do primeiro dia. Acordado, lembro-me dessas coisas recordadas pelo sonho e pela vida e suas noites de festa, de cada uma delas. Vale reviver essas noites, somente à noite o São João é festa. Atribui-se ao poeta Petrarca que La vita el fin, e ‘l dì loda la sera ou “o fim louva a vida; e a noite, o dia” ...  

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conteúdo original divulgado em: https://www.recantodasletras.com.br/

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