por Cleudimar Ferreira
A
invenção do cinema, desde o feito extraordinário dos irmãos Lumiére até os dias
presentes, tem exercido um certo fascino em muita gente e, por certo, continuará
fascinando gerações. Parece até que a sua incomum descoberta para o mundo, lá
atrás, em 1895, mesmo que tenha acontecido sobre o pretexto do ocaso; da
curiosidade dos dois jovens franceses; a sua conquista, acentuou a ideia de que o
surgimento do cinema já estava traçado
na linha do tempo. Ou seja, programado para acontecer por uma razão não
explicável. Por
essa singular força e, enigmática forma como surgiu,
o cinema passou com
todos os brilhos rumo ao futuro, indo por
aí a fora, deixando-se cair cheio de graças, nas graças de muitos, sem
diferenciar por características essa graça de ninguém.
E
essa despretensiosa brincadeira dos Lumiére, experimento, curiosidade ou
qualquer coisa como queira classificar esse momento na história do cinema, foi até
certo ponto marcante para mim quanto admirador, consumidor e venerador dessa
magia substancial na minha vida. Não tenho nenhuma feição tanto quanto alguém
que vive diretamente ligada a feitura dessa atividade. Mas o movimento das inventivas
imagens criadas pelos dos rapazes de Besançon,
me atraiu desde criança, grudou e fez morada também. Afinal, quem não gosta de
um bom filme, de uma história bem contada, aditivada através de imagens que
encantam nossos olhos.
No
presento, tão distante do que foi um dia as salas de ruas no sertão paraibano,
vivo apenas das lembranças e das poucas visitas que faço aos cinemas da
capital, quando tenho folga das atividades que exerço como professor. O mais,
me deito na cama e, antes de dormir, tiro de dentro de mim os momentos que vivi,
quanto frequentador dos cinemas na minha sempre terras Cajazeiras. Aí eu me
deleito e construo um sono eterno, pleno de lembranças e sonhos de um tempo que
ficou eternamente.
Partindo
desse pressuposto; dos Lumiére, apenas as lembranças do que dizem os escritos e
o que contam os historiadores. Mas dos extintos cinemas de Cajazeiras, tenho comigo
a vivência e convívio, o que me dá subsídios para falar, contar o que vi, o que
passei e o que presenciei. Um desses instantes marcantes foi quando o filme Scarface
foi exibido nos cinemas Apolo XI e Pax - Os cinemas da diocese ou cinemas do
bispo, como muitos se referiam a estas duas casas de exibições que já existiu
em Cajazeiras.
De
um lado, um exibidor apaixonando por cinema, embora conservador e durão; do
outro lado um divulgador de rua quase programador, que apenas cumpria ordens,
mas recorria as boas relações que havia entre os dois, para dar pitacos, sugestões
e até incorrer das decisões referendadas pelo primeiro. Indo diretamente ao
ponto, falo de Dom Zacarias Rolim de Moura (bispo diocesano de Cajazeiras) e de
Cícero Alves (o Cícero do Bradesco). Um, o patrão e o outro, um empregado.
Dá
parte de Dom Zacarias, era quase sagrado todos os meses ia a Recife, Pernambuco,
para fazer duas coisas supostamente necessárias também em sua vida. A primeira,
era visitar seu médico, que o medicava e orientava o seu tratamento contra um germe
de barata que havia adquirido. A segunda, talvez um poco mais prazerosa para o
bispo, a de percorrer as distribuidoras de filmes,
escolher a seu gosto as melhores películas e fechar com essas empresas de
cinema, a programação mensal dos seus dois cinemas.
De
responsabilidade das distribuidoras, ficava a garantia dos repasses e envios a
Cajazeiras pela Viação Gaivota, no dia e hora marcada, dos filmes programados,
bem como, todo material necessário para a divulgação interna e externa dos filmes.
Do
outro lado, era atribuição de Cícero Alves, a incumbência
de fazer a programação de rua dos cinemas. Para que isso acontecesse, precisava
preparar as tabuletas, cobrir primeiramente todas com papel jornal, colar os
cartazes ou fotos e fazer os letreiros indicativos com data, hora, além da
qualificação e censura - se era proibido para menores de 14 ou 18 anos. Tudo
com mandava a tradição e a cultura cinéfila nessa época.
Cícero
não tinha habilidade nenhum com a pintura de letreiros e, essa parte, cabia a
mim. Usava as milhas habilidades de artista plástico para criar os letreiros
estilizados e os outros enfeites. Ou seja, deixar as tabuletas mais atrativas,
com condições de convencer o público a ir aos cinemas.
Era
também responsabilidade de Cícero Alves, talvez a mais significativa de todas,
ir buscar no terminal rodoviário Antônio Ferreira, os filmes, que chegavam a
Cajazeiras, vindos da capital pernambucana, via empresa Viação Gaivota, além de
uma vez por outra, revisar os rolos de fitas e, principalmente, assumir a
portaria dos cinemas quando de uma inesperada falta ou folga do porteiro
titular.
Então,
duas vezes por semana saíamos do Cine Pax, às 9h00 da manhã, conduzindo uma
carrocinha até o guichê da Viação Gaivota. Depois que os filmes eram
despachados pela Gaivota, pegávamos esses filmes e nos deslocávamos até a Cúria
Diocesana para certificar e mostrar ao bispo o conteúdo que havia chagado do
Recife.
Uma
vez passado pelo visto do Senhor Bispo, nos deslocávamos desse local em direção do Cine
Apolo XI, onde recolhíamos o material de divulgação e, deixávamos sob
responsabilidade os operadores - os irmãos Geraldo e Manoel Conrado, as latas
com os rolos de fitas. As fitas eram revisadas quadro-a-quadro pelos irmãos
Conrado e depois prontificadas para serem exibidas nas sessões à noite.
O
filme Scarface, uma produção de Brian De Palma, era sempre incluído nas
programações mensais que Dom Zacarias fazia juntos as distribuídos no Recife. Porém,
nem o bispo e muito menos Cícero Alves, sabia os verdadeiros motivos dessas
distribuidoras não enviar esse filme a Cajazeiras. Muitas vezes quando era
convidado por Cícero para ir com ele no gabinete do Bispo, vi Dom Zacarias contrariado,
chateado e, em certos momentos, até estressado, por conta do entrave protagonizado
pelo não envio do filme. Dava a entender que havia um problema com a
distribuição de Scarfece.
Se
havia problema ou não falha, as tentativas de correção desse embrolho eram
feitas quase todos os meses por Dom Zacarias, através das reclamações constantes
via telefonemas a Recife. Mas Scarface não chegava nos cinemas do bispo e, no seu
lugar, eram enviadas outras produções menos destacadas, que chegavam como uma surpresa
para todos, que tampouco haviam sido incluídas nas programações dos Cines Apolo
XI e Pax.
Nos
intervalos do tempo, quando o filme de Brian De Palma já estava entrando para
um estágio de olvidamento, sendo considerado pelo bispo exibidor, uma carta
foro do maço do baralho ou tinha entrado subitamente na rota do esquecimento, tanto por Cícero quanto por Dom Zacarias, eis
que um certo sábado eu fui com Cícero ao guichê da Gaivota, receber os filmes
que havia chegado.
Depois
dos tramites e despachos do pacotão feito por essa empresa de transporte interestadual,
colocamos a encomenda na carrocinha e antes da sair do local, abrimos a estopa
para ver que filme havia chagado. Tal foi a inesperada surpresa para nós dois,
ao ver os cartazes e algumas fotografias, bem como, as latas com rolo de fitas,
estampado a palavra Scarface.
Nos
alegramos e apresamos o passo em direção ao Palácio do Bispo, para anunciar a
Dom Zacarias a grata surpresa da chegada do filme tão aguardado por ele. Quando
chegamos ao local, eu fiqueI na calçada, sentado na carrocinha cuidando do filme
e Cícero se dirigiu ao recinto onde Dom Zacarias estava. Fiquei no aguardo por
quase 15 minutos e ouvindo, mesmo um pouco distante, múrmuros da conversa entre
os dois.
Esperei
por um certo tempo a volta de Cícero. Quando de repente ele apareceu, descendo
as escadarias da capela anexa ao Palácio Episcopal. Ao
chegar junto a mim, ele chega simplesmente calado, sem dizer nada, pegou o
condutor da carricinha e saiu deslisando as duas rodas em direção ao Cine Apolo
XI. O silêncio era total até eu falar: - e aí, Dom Zacarias gostou da chegada de
Scarfase? Com a aura fechada, meio embirrado, de forma inaudível ele respondeu:
- home, não fale não!
Ao
se aproximar da esquina da Catedral Nossa Senhora da Piedade, ele abriu a boca
e começa a jogar para fora as primeiras palavras grosseiras, consequência da
conversa estressante que teve com o bispo exibidor. E chutando tudo que via
pela frente; Cícero, contrariando o bom sentido como manda a etiqueta, começou
a berrar: - Cara, o home é cruel demais! Um sujeito mau, ruim e duro com a
gente. Quer porque quer fazer a estreia simultânea do filme nos dois cinemas. Está
vendo que isso não vai dar certo.
Confesso
que fiquei preocupado e sem entender a ideia encomendada por Dom Zacarias. Afinal
só havia uma cópia de Scarface. Como exibir ao mesmo tempo o filme nos dois
cinemas. O Cine Apolo XI, ficava na zona Norte e o Cine Pax, na zona sul da
cidade.
Em
se tratando de cidade do interior, o percurso entre os dois cinemas não era lá
tão longe assim. Dava para ser percorrido em 15 minutos. O problema era a
logísticas. Já que o bispo havia estabelecido que a exibição do filme seria feita
dessa forma, então ficou estabelecido na conversa entre os dois, que a sessão
no Cine Apolo iria iniciar as 19h00 e no Cine Pax, às 20h00. Uma diferença de
uma hora de cinema para cinema, com objetivo não haver problemas na exibição
simultânea.
Uma
vez feito a programação de rua, com a colocação das tabuletas contendo os
cartazes do filme em lugares estratégicos da cidade, anunciando a exibição paralela
e os novos horários de exibição, a expectativa dos operadores dos projetores, era
aguardar e ver na prática se tudo ia dar certo.
Chegou
à noite, o Cine Teatro Apolo XI começou rodar a primeira parte do filme no
horário programado. Quando terminou a exibição da primeira parte, Geraldo
Galvão, um voluntário com presença marcada todos os dias no Cine Teatro Apolo
XI, pegou sem perder muito tempo a fita, subiu em uma bicicleta e foi deixar no
Cine Paz.
Na
hora que Geraldo chegou no Cine Paz com a primeira parte de Scarfece, Zezinho, o
operador de projetor, já estava esperando na portaria do cinema para levar a fita
até a cabine de projeção. Aquele funcionário pegou o rolo de fita, se dirigiu
rapidamente até o seu espaço de trabalho, rebobinou a fita e, em seguida, deu início
a exibição.
Tudo
ia correndo muito bem, mesmo sabendo que para satisfazer o ego do bispo Dom
Zacarias Rolim de Moura, o esforço do voluntário Geraldo Galvão, estava sendo
grande. Ele aceitou a tarefa, simplesmente por ter cultuado uma boa amizade com
funcionários do cinema, por gostar de cinema e vivenciar como era de praxe em alguns
jovens de Cajazeiras desse tempo, o dia a dia das atividades que antecedia as
exibições dos filmes nos cinemas da sua terra.
Apesar
do calor sudorífico e grudento das cabines de projeções dos dois cinemas,
principalmente a do Cine Pax - apertada, quente e sufocante demais para os seus
projetistas, Zezinho e seu filho - que fazia a função de auxiliar de operador,
até a terceira parte do filme, tudo ia transcorrendo sem nenhum problema ou se dando
muito bem.
Porém
fatores abstratos no Cine Teatro Apolo XI, muito mais ligados a uma energia
externa ou quem sabe do além, interferiu na perfeição da projeção feitas pelos
irmãos Geraldo e Manoel Corado, quebrando a fita da quarta parte de Scarface. E
assim, induzindo o público que assistia o filme, a produzir ligeiros assovios, gritos
e suportar quase 10 minutos de paralização da projeção.
Passado
esse momento, o filme continuou sendo rodado e quando a quarta parte de
Scarface foi consumida pelas garras das bobinas do projetor do Apolo XI,
Geraldo Galvão, imediatamente pegou o rolo de fita e seguiu em disparada para o
Cine Pax. Quando chegou na portaria do cinema, o filho de Zezinho já o aguardava.
Sem
mais delongas, o rapaz recebeu a quarta parte das mãos de Geraldo e, as pressas,
subiu a escada caracol do Cine Paz, até a cabine onde o pai esperava. O rapaz entrou
feito a luz de um relâmpago naquele espaço apertado, rebobinou a o rolo de fita
contando os minutos e segundo, pois a terceira parte já estava acabando. Só deu
tempo de colocar no segundo projetor. Quando terminou, já foi acionando a máquina,
dando prosseguimento a projeção do filme, sem provocar brecha ou espaço branco
na passagem da terceira parte para quarta parte.
No
Cine Teatro Apolo XI, com sua cabine mais moderna, ampla, com ar condiciono,
seguia a projeção da quinta e última parte do filme de Brian De Palma e lá no
Cine Paz, a quarta parte ainda estava em andamento. Parecia que tudo aí acabar
com um final feliz. Menos para Geraldo Galvão que já estava com as baterias
arriadas e vencidas de tanto “pra lá e pra cá” entre os dois cinemas. Quando de
repente da escuridão do céu desceu sobre Cajazeiras as primeiras gotas
cristalinas de uma chuva forte de 20 minutos. Tempo suficiente para o “The End”
anunciar o final do filme.
Em
questão de pouco minutos, o operador Geraldo Conrado, apareceu com quinta e última
parte no hall do cinema para entregar a o outro Geraldo, o Galvão. Ficaram olhando
uma para cara do outro, até Geraldo Galvão sussurrar: - E agora, o que faremos
com essa chuva?
O
Segurança de alcunha Didi, responsável pela ordenação das filas na portaria e
na bilheteria, que estava bem próximo dos dois Geraldo, respondeu para Geraldo
Galvão: - E agora! Agora enfrente a chuva. Vá logo! pois a quarta parte do
filme no Cine Pax, se não estiver terminando, está faltando pouco tempo. Sem
dizer nada para o segurança, ele pegou do operador de projeto do Cine Apolo XI,
a lata com rolo de fita, colocou debaixo da camisa, subiu na bicicleta e começou
a pedalar em direção ao cinema da zonal sul da cidade.
Ao
se aproximar do Grande Hotel, onde hoje é o canal da Travessa Joaquim Costa, a
chuva de um toró como estava, passou a diminuir moderadamente o seu volume. Entretanto,
as águas escorriam forte, encobrindo o calçamento. Geraldo com toda pressa do
mundo, se jogou com bicicleta, rolo de fita e tudo, no meio do aguaceiro.
Nesse
momento, com todo esforço feito para vencer as águas, ele sentiu um estralo na
corrente da Bike. Percebeu que a corrente havia saído da coroa. Preocupado com
o tempo e com a chuva que ainda caia naquela noite, encostou a bicicleta no
meio fio do calçamento e depois de certo tempo, colocou de volta a corrente no
seu lugar.
Quando
chegou no Cine Pax com a última parte do filme, visivelmente cansado, todo exarcado,
a projeção estava parada, com a plateia apreensiva, impaciente no auditório do
cinema, esperando para assistir o desfecho final de Scarface. Se Al Pacino sobreviveria
ou se seria morto. Logo em seguida, chegaram também os dois operadores do Cine
Teatro Apolo XI e o porteiro, para ajudar Zezinho e seu filho na logística, na
conclusão da exibição do filme, nessa sala que era considerada o tradicional
cinema da zonal sul de Cajazeiras.
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Créditos das imagens:
Imagem 1. (da Internet) Cícero Alves (in memoriam) e Dom Zacarias Rolim de Moura(in memoriam) Bispo Diocesano de Cajazeiras.
Imagem 2. (de um fotograma) O ator Al Pacino em Scarface
Imagem 3. (1. Foto: Borracha) Cine Teatro Apolo XI (2. do Google Map) Prédio onde funcionou o Cine Pax
Esse texto é único e tem registro. Plagiar ou copiar sem breve autorização do autor, poderá acarretar em pedido de reparos e danos perante a lei.
Grato pelo relato da memória dos cinemas de Cajazeiras com seu personagens diversos e necessário. Abs
ResponderExcluirEu não entendo como Cajazeiras a terra da cultura não tem hoje Cinema, quanto aos personagens deste linda Historia do Cinema na terra do Padre Rolim, Cicero Alves Moreira, ou como era conhecido como Cícero do Bradesco, meu irmão, me lembro muito bem do Cine Apolo XI e Cine Pax, os cinemas do Bispo, Dom Zacarias tinha na sua época uma visão de futuro e fez muito por Cajazeiras até mesmo a Radio Alto Piranhas era da Diocese de Cajazeiras, foi muito bem relatado na Historia do cinena da terra do Padre Rolim por todos esses personagens citados.
ResponderExcluirBem pensado, amigo. Cajazeiras já teve 3 cinema, um cineclube - cinneclube wladimir Carvalho, tivemos nos anos 60, 70 e 80, atores da cidade atuando no cinema nacional, como foi caso de Sávio Rolim. Porém a cidade não tem um cinema!Já era tempo de ter pelo menos uma ou duas salas de exibições. Quanto a D. Zacarias, de fato ele foi um bisbo que de certa forma contribui com a cultura da cidade. Criou a FAFIC; Lutou pela instalação do campus da UFPB em Cajazeiras; Fundou dois cinema na cidade e instalou uma emisora de Rádio.
ResponderExcluirUm abraço, amigo.
E obrigado por ter acessado este blog e ter deixado seu comentário.
Francisco Cleudimar é verdade o Bisbo Dom Zacarias impulsionou a Cultura de Cajazeiras , ele tinha visão de futuro coisa que esta faltando hoje em relação a os nosso representantes tudo que você falou que Dom Zacarias fez por Cajazeiras é verdade, se Cajazeiras tivesse pele menos uns três bispos e políticos com a visão de Dom Zacarias Cajazeiras seria uma cidade mais desenvolvido do que hoje em dia.
ResponderExcluirÉ isso mesmo! Vivemos hoje averssão de tudo, onde os nossos administradores, gastam mal o pouco dinheiro destinado a cultura.
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