Naquela
tarde-noite de sábado, mesmo com a chegada da penumbra, ainda dava para ver nas
águas turvas do Açude Grande, as últimas cores do por do sol, caprichosamente espelhada
nos assentos dos bancos da Praça João Pessoa. Para quem gostava de gastar
pacientemente as poucas horas que ainda havia do crepúsculo, esperando a noite
chegar com a única sessão do Cine Éden, o cintilante sol nos acentos da Praça,
principalmente os que ficavam frente-a-frente com a fachada da principal sala
de exibição da cidade, percebia logo adiante na antessala do cinema, bem na entrada,
expostos aos olhos dos que queriam ver e dos que não; os estampados cartazes das
melhores películas que a programação do Éden podia oferecer para aquele mês: Viva
Django! Love Story, Os Canhões de Navarone eram os destaques e as estrelas
anunciadas.
Daciflay,
não era bem um personagem de um enredo ficcional. Era quase real mesmo! Embora
suas virtudes fossem surreais para a vida que ele levava. Ou seja, conduzia sem
diferenças uma vida de classe media bem sucedida para os padrões das famílias
sertanejas dos anos setenta. Eu pelo menos, dos filmes que assisti naquele que
foi o tradicional cinema de Cajazeiras, não lembro ter visto um personagem com
esse nome. A não ser o parecido George Mcfly da trilogia ‘De Volta Para o
Futuro’, dirigida por Robert Zemeckis. Falavam as línguas em sintonia com os
olhos bisbilhoteiros das cajazeiras daquele tempo, que o pai era um sucedido agropecuarista
e político em Saint Helen, no noroeste paraibano, fronteira com o Estado do
Ceará.
Carregando
naturalmente um trejeito que muito lembrava o comediante Jerry Lewis, Daciflay
não demonstrava apego a sua condição social, nem tampouco a alguma virtude que parecesse
ter. Pois entre todos que comungava da sua amizade, ser versátil, engenhoso e
articulista, erámos todos nós - confusos projetos de adolescentes com adultos, que parecia que não sair dessa fase
nunca. Por isso, tanto ele como todos os garotos de sua época, na pura
inocência da vida, achava que um desviozinho de conduta juvenil, não seria
motivos de punição perante as regras e os costumes das famílias da época. Sendo
assim, os atos que praticávamos, não passava de uma traquinagem um tanto quanto
inocente.
Se por
essa perdida razão, as artimanhas eram ou não um desvio de conduta, molecagens
de garotos em fase de amadurecimento ou algo que parecesse ser; para nós não
havia diferença nenhuma quando a tarefa que estava em jogo - à garantia certa da
entrada no cinema. E foi cegamente guiado por esse raciocínio; instruído nesse
caminho, que Daciflay nos envolveu numa arriscada missão. A de vender por vias
paralelas, de forma ilegítima, as entradas no Cine Teatro Éden. Esse momento eu
não esqueci, pois está sacrificado entre as lembranças que guardo em mim,
muitos delas vividas a partir das diversas sessões que vi nesse cinema.
O
principio de toda essa história, começou durante a convivência diária que todos
nós alunos do Colégio Comercial Monsenhor Constantino Vieira, tínhamos nos
intervalos das aulas. Depois de muitas conversas preliminares sobre essa perniciosa
tarefa, num desses espaços entre as aulas, Daciflay chegou para mim e Letto d’Drão
e nos contou com detalhes como seria a vendagem dos ingressos, bem como os
mesmos estavam sendo adquirindos. Segundo ele, as entradas seriam vendidas as
escondidas, em sigilo absoluto, para que ninguém ficasse sabendo dessa inclinação.
Aparentemente uma sutil burlada no faturamento do cinema, comparada a uma
parodia de alguns momentos da primeira fase do filme ‘Era uma vez na América´,
de Sergio Leone, onde garotos na flor das suas puberdades deixaram se levar por
brincadeiras ilícitas, que na vida real, fora da tela do cinema, seriam
sumariamente desaprovadas pelos nossos pais.
No final
da tarde do dia marcado para o inicio dessa atividade, depois das aulas, na
calada da unidade do SANDU que ficava vizinho do Colégio Comercial, outros
detalhes foram esmiuçados e esclarecidos. Um deles foi à necessidade de uma
atenção total na segurança da atividade. Para que tudo não desse errado. Daciflay
com seu senso de humor deixou clara que o sigilo absoluto era necessário para que
nada vasasse ou viesse à tona, pois se isso acontecesse, cada um teria que se
virar como pudesse com a Bomba H na carapuça. E lá fomos nós embarcar pela
primeira vez nessa aventura que nenhum pensava ou sabia que fim terminaria.
No
primeiro dia ficamos os três espalhados, fazendo ponto na esquina do Edifício
Ok, se valendo apenas da pouca luz da Rua Joaquim de Souza. No movimento de ida
e volta das 19 horas na Praça João Pessoa, no amplo intervalo antes da estreia
do filme ‘Três homens em conflito’, quase todos transeuntes que passava na
calçada do Edifício OK indo em direção do cinema, eram parados por um de nós e,
uma entrada ao cinema era oferecida. Os frequentadores do Cine Éden, apressados
para pegar a melhor cadeira, já vinham olhando e monitorando o crescimento da
fila na bilheteria. Procurando evitar enfrentar a fila, alguns compravam nossos
ingressos sem nenhuma objeção. Porém outros mais curiosos compravam, mas só
depois de uma longa conversa e, as perguntavas clássicas eram: - onde vocês
conseguiram esses ingressos? Porque estão vendendo? Isso vale mesmo? Não é
falso não? As respostas dos aprendizes de cambista saíam orquestradas: - Vale! É
estreia né! Desistimos de ver o filme, pois o cinema ficará lotado e vai
atrapalhar o entendimento filme. Assim, não dar! Resolvemos revender e ver o
filme com mais folga a amanhã.
Depois que
vendemos todos os ingressos nessa noite, saímos até a Praça da Cultura para
fazia o balancete. Quando chegamos ao local, Letto e eu, entregamos o dinheiro
a Daciflay e recebemos dele os ingressos para nossa entrada no Éden. Minutos
depois quando eu, Daciflay e Letto d’Drão, chegamos à portaria do cinema, o
tempo estava estourando. Faltava pouco menos de 20 minutos para o inicio da
projeção. Então, sem mais delongas, pegamos o rabo da fila da entrada, que
conforme o horário já era bem pequena. Entramos sem nenhuma cara feia do
porteiro e fomos ver o filme. Tanto Eu e como Letto, não tinha condições
financeiras nenhuma que favorecesse pagar três por semana a entrada no Éden.
Então essa brincadeira perigosa proposta pelo filho de seu Dacirvaldo, passou a
ser um alívio no bolço dos nossos pais.
No
transcorrer do tempo, envolvidos até a alma na atividade, percebemos que já
tinha passados quase três meses viajando nessa prática. Até que um dia o colega
Daciflay, depois de muita cobrança minha e de Letto para ele nos revelasse onde
estava à fonte da derrama dos ingressos, acabou entregando o ouro e nos dizendo
como as entradas estavam chegando às suas mãos. Meio tosco tenso e nervoso ele
falou que a mina estava com o porteiro do cinema. Como praxe, o porteiro - encarregado
original de receber os ingressos dos frequentadores, era o responsável pelo
repasse. Como era habitual, ele rasgava a maioria dos bilhetes e depositava na
urna, mas uma parte desses, ele simplesmente dobrava e colocava no receptáculo.
No dia seguinte, quando voltava às 8 horas para recolher os ingressos rasgados da
urna e queimar, conforme orientação dada pelo seu empregador, o exibidor Carlos
Paulino - proprietário do Cine Éden, ele recolhia os que estavam dobrados,
embolsava e, queimava o resto.
Essa
brincadeira para uns garotos que desconhecia os limites dos atos que
praticavam, estava indo muito bem. Pois até certo prazer em praticar era
visível em cada um nós, nos deixando sentimentalmente bem à vontade. Era a
garantia de não pagar o acesso ao cinema. Ganhava o porteiro do Cine Éden e
Daciflay o dinheirinho do lanche e, eu e Letto, a entrada no Cine Éden, principalmente
nas grandes estreias, como foi a do filme ‘O Dez Mandamentos’, com o lendário
ator Charlton Heston, onde a quantidade de ingressos que vendemos foi a maior
de todas.
Inocente do
perigo que poderia ocorrer, o porteiro ganancioso aumentou a quantidade das
entradas em nossas mãos no dia da rentrée do filme ‘Terremoto’. Nesse mesmo dia
Daciflay apresentou um terceiro personagem nessa história. Era Gilnécio que
passou a compartilhar conosco na estreia desse filme, a vendagem dos ingressos
ao cinema de Carlos Paulino. Confessor que fiquei assustado e temeroso, pois já
éramos quatro infringentes na prática, operando na área do Edifício Ok. Mas o
interesse de todos, superava qualquer possibilidade de fracasso ou de algo dar
errado. Por isso continuamos! Continuamos até que um dos frequentadores rompeu
o silêncio. Ele chegou à fila da bilheteria com um ingresso na mão e, ao se
dirigir a um amigo que estava na fila, disse que havia comprado um ingresso a
uma pessoa na esquina do Edifício Ok.
O soldado
Zé Maleiro, que era o encarregado de organizar a fila da entrada, estava
próximo, viu esse frequentador com o ingresso na mão e ouviu também o que ele
tinha dito para o amigo na fila. Zé Maleiro não perdeu tempo e, imediatamente
perguntou ao frequentador quem era essa pessoa que havia repassado o ingresso
para ele. O frequentador um tanto displicente não soube explicar quem era. Alguns
minutos depois Zé Maleiro percebeu que outro frequentador chegou e foi direto
para a fila de entrada com o ingresso na mão sem passa pela bilheteria. O
organizador das filas e do movimento da portaria do cinema aproveitou a
limitada luz do edifício Ok e se deslocou calmamente até a esquina do prédio.
Ao se aproximou e viu a nossa movimentação em uma nas esquinas da Rua Joaquim
de Souza com a Praça João Pessoa.
Ele
apressou o passo em direção a Daciflay que estava mais próximo dele. Foi quando
eu ouvi do nosso amigo a frase: - Sujou! Corre, lá vem Zé Maleiro. Nesse
instante, eu vi quando Zé Maleiro chegou a tocar no braço de Daciflay, mas ele
foi mais rápido e, juntos corremos desesperadamente em direção da Praça da
Cultura e, de lá, cada um tomou seu rumo em direção das suas casas. No dia
seguinte o terremoto desabou sobre o porteiro. Seu Calo Paulino, que não
costuma vir pela manhã ao seu cinema, chegou depois das 7 horas da matina ao Cine
Éden. Esperou friamente o porteiro que chagava, sempre às 8 horas, para
demiti-lo da atividade que exercia no seu cinema.
Sobre a conversa entre os dois nessa manhã, não seu dizer como foi. Só sei que o coitado do porteiro foi substituído e, Daciflay, passou um bom tempo sem aparecer se quer na calçada do Éden. Quanto a nós - Eu, Letto e Gilnécio, já que Daciflay não havia revelado ao porteiro quem estava com ele nessa operação e, nem o próprio Zé Maleiro, na noite do ocorrido fraga, tinha conseguido identificar quem estava com Daciflay vendendo as entradas, tivemos por um triz salvaguardado os nossos rostos. Mesmo assim, só fomos assistir o filme ‘Terremoto’ na ultima sessão desse filme no Cine Éden. Pelo menos foi esse o meu caso.
Travessuras interessantes e perigosas, kkkkk.agradáveis lembranças...
ResponderExcluirNa época, tínhamos entre 12 e 13 anos. Inocentemente embarcamos nessa, só para ter direito a uma entrada no Cine Éden.
ExcluirHistória bem interessante
ResponderExcluir