quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

CONVERSAS DE CINE ÉDEN. O Privado período sem ver filmes no Éden

por Cleudimar Ferreira


Naquela tarde-noite de sábado, mesmo com a chegada da penumbra, ainda dava para ver nas águas turvas do Açude Grande, as últimas cores do por do sol, caprichosamente espelhada nos assentos dos bancos da Praça João Pessoa. Para quem gostava de gastar pacientemente as poucas horas que ainda havia do crepúsculo, esperando a noite chegar com a única sessão do Cine Éden, o cintilante sol nos acentos da Praça, principalmente os que ficavam frente-a-frente com a fachada da principal sala de exibição da cidade, percebia logo adiante na antessala do cinema, bem na entrada, expostos aos olhos dos que queriam ver e dos que não; os estampados cartazes das melhores películas que a programação do Éden podia oferecer para aquele mês: Viva Django! Love Story, Os Canhões de Navarone eram os destaques e as estrelas anunciadas.

Daciflay, não era bem um personagem de um enredo ficcional. Era quase real mesmo! Embora suas virtudes fossem surreais para a vida que ele levava. Ou seja, conduzia sem diferenças uma vida de classe media bem sucedida para os padrões das famílias sertanejas dos anos setenta. Eu pelo menos, dos filmes que assisti naquele que foi o tradicional cinema de Cajazeiras, não lembro ter visto um personagem com esse nome. A não ser o parecido George Mcfly da trilogia ‘De Volta Para o Futuro’, dirigida por Robert Zemeckis. Falavam as línguas em sintonia com os olhos bisbilhoteiros das cajazeiras daquele tempo, que o pai era um sucedido agropecuarista e político em Saint Helen, no noroeste paraibano, fronteira com o Estado do Ceará.

Carregando naturalmente um trejeito que muito lembrava o comediante Jerry Lewis, Daciflay não demonstrava apego a sua condição social, nem tampouco a alguma virtude que parecesse ter. Pois entre todos que comungava da sua amizade, ser versátil, engenhoso e articulista, erámos todos nós - confusos projetos de adolescentes com adultos, que parecia que não sair dessa fase nunca. Por isso, tanto ele como todos os garotos de sua época, na pura inocência da vida, achava que um desviozinho de conduta juvenil, não seria motivos de punição perante as regras e os costumes das famílias da época. Sendo assim, os atos que praticávamos, não passava de uma traquinagem um tanto quanto inocente.

Se por essa perdida razão, as artimanhas eram ou não um desvio de conduta, molecagens de garotos em fase de amadurecimento ou algo que parecesse ser; para nós não havia diferença nenhuma quando a tarefa que estava em jogo - à garantia certa da entrada no cinema. E foi cegamente guiado por esse raciocínio; instruído nesse caminho, que Daciflay nos envolveu numa arriscada missão. A de vender por vias paralelas, de forma ilegítima, as entradas no Cine Teatro Éden. Esse momento eu não esqueci, pois está sacrificado entre as lembranças que guardo em mim, muitos delas vividas a partir das diversas sessões que vi nesse cinema.

O principio de toda essa história, começou durante a convivência diária que todos nós alunos do Colégio Comercial Monsenhor Constantino Vieira, tínhamos nos intervalos das aulas. Depois de muitas conversas preliminares sobre essa perniciosa tarefa, num desses espaços entre as aulas, Daciflay chegou para mim e Letto d’Drão e nos contou com detalhes como seria a vendagem dos ingressos, bem como os mesmos estavam sendo adquirindos. Segundo ele, as entradas seriam vendidas as escondidas, em sigilo absoluto, para que ninguém ficasse sabendo dessa inclinação. Aparentemente uma sutil burlada no faturamento do cinema, comparada a uma parodia de alguns momentos da primeira fase do filme ‘Era uma vez na América´, de Sergio Leone, onde garotos na flor das suas puberdades deixaram se levar por brincadeiras ilícitas, que na vida real, fora da tela do cinema, seriam sumariamente desaprovadas pelos nossos pais.

No final da tarde do dia marcado para o inicio dessa atividade, depois das aulas, na calada da unidade do SANDU que ficava vizinho do Colégio Comercial, outros detalhes foram esmiuçados e esclarecidos. Um deles foi à necessidade de uma atenção total na segurança da atividade. Para que tudo não desse errado. Daciflay com seu senso de humor deixou clara que o sigilo absoluto era necessário para que nada vasasse ou viesse à tona, pois se isso acontecesse, cada um teria que se virar como pudesse com a Bomba H na carapuça. E lá fomos nós embarcar pela primeira vez nessa aventura que nenhum pensava ou sabia que fim terminaria.

No primeiro dia ficamos os três espalhados, fazendo ponto na esquina do Edifício Ok, se valendo apenas da pouca luz da Rua Joaquim de Souza. No movimento de ida e volta das 19 horas na Praça João Pessoa, no amplo intervalo antes da estreia do filme ‘Três homens em conflito’, quase todos transeuntes que passava na calçada do Edifício OK indo em direção do cinema, eram parados por um de nós e, uma entrada ao cinema era oferecida. Os frequentadores do Cine Éden, apressados para pegar a melhor cadeira, já vinham olhando e monitorando o crescimento da fila na bilheteria. Procurando evitar enfrentar a fila, alguns compravam nossos ingressos sem nenhuma objeção. Porém outros mais curiosos compravam, mas só depois de uma longa conversa e, as perguntavas clássicas eram: - onde vocês conseguiram esses ingressos? Porque estão vendendo? Isso vale mesmo? Não é falso não? As respostas dos aprendizes de cambista saíam orquestradas: - Vale! É estreia né! Desistimos de ver o filme, pois o cinema ficará lotado e vai atrapalhar o entendimento filme. Assim, não dar! Resolvemos revender e ver o filme com mais folga a amanhã.

Depois que vendemos todos os ingressos nessa noite, saímos até a Praça da Cultura para fazia o balancete. Quando chegamos ao local, Letto e eu, entregamos o dinheiro a Daciflay e recebemos dele os ingressos para nossa entrada no Éden. Minutos depois quando eu, Daciflay e Letto d’Drão, chegamos à portaria do cinema, o tempo estava estourando. Faltava pouco menos de 20 minutos para o inicio da projeção. Então, sem mais delongas, pegamos o rabo da fila da entrada, que conforme o horário já era bem pequena. Entramos sem nenhuma cara feia do porteiro e fomos ver o filme. Tanto Eu e como Letto, não tinha condições financeiras nenhuma que favorecesse pagar três por semana a entrada no Éden. Então essa brincadeira perigosa proposta pelo filho de seu Dacirvaldo, passou a ser um alívio no bolço dos nossos pais.

No transcorrer do tempo, envolvidos até a alma na atividade, percebemos que já tinha passados quase três meses viajando nessa prática. Até que um dia o colega Daciflay, depois de muita cobrança minha e de Letto para ele nos revelasse onde estava à fonte da derrama dos ingressos, acabou entregando o ouro e nos dizendo como as entradas estavam chegando às suas mãos. Meio tosco tenso e nervoso ele falou que a mina estava com o porteiro do cinema. Como praxe, o porteiro - encarregado original de receber os ingressos dos frequentadores, era o responsável pelo repasse. Como era habitual, ele rasgava a maioria dos bilhetes e depositava na urna, mas uma parte desses, ele simplesmente dobrava e colocava no receptáculo. No dia seguinte, quando voltava às 8 horas para recolher os ingressos rasgados da urna e queimar, conforme orientação dada pelo seu empregador, o exibidor Carlos Paulino - proprietário do Cine Éden, ele recolhia os que estavam dobrados, embolsava e, queimava o resto.

Essa brincadeira para uns garotos que desconhecia os limites dos atos que praticavam, estava indo muito bem. Pois até certo prazer em praticar era visível em cada um nós, nos deixando sentimentalmente bem à vontade. Era a garantia de não pagar o acesso ao cinema. Ganhava o porteiro do Cine Éden e Daciflay o dinheirinho do lanche e, eu e Letto, a entrada no Cine Éden, principalmente nas grandes estreias, como foi a do filme ‘O Dez Mandamentos’, com o lendário ator Charlton Heston, onde a quantidade de ingressos que vendemos foi a maior de todas.

Inocente do perigo que poderia ocorrer, o porteiro ganancioso aumentou a quantidade das entradas em nossas mãos no dia da rentrée do filme ‘Terremoto’. Nesse mesmo dia Daciflay apresentou um terceiro personagem nessa história. Era Gilnécio que passou a compartilhar conosco na estreia desse filme, a vendagem dos ingressos ao cinema de Carlos Paulino. Confessor que fiquei assustado e temeroso, pois já éramos quatro infringentes na prática, operando na área do Edifício Ok. Mas o interesse de todos, superava qualquer possibilidade de fracasso ou de algo dar errado. Por isso continuamos! Continuamos até que um dos frequentadores rompeu o silêncio. Ele chegou à fila da bilheteria com um ingresso na mão e, ao se dirigir a um amigo que estava na fila, disse que havia comprado um ingresso a uma pessoa na esquina do Edifício Ok.

O soldado Zé Maleiro, que era o encarregado de organizar a fila da entrada, estava próximo, viu esse frequentador com o ingresso na mão e ouviu também o que ele tinha dito para o amigo na fila. Zé Maleiro não perdeu tempo e, imediatamente perguntou ao frequentador quem era essa pessoa que havia repassado o ingresso para ele. O frequentador um tanto displicente não soube explicar quem era. Alguns minutos depois Zé Maleiro percebeu que outro frequentador chegou e foi direto para a fila de entrada com o ingresso na mão sem passa pela bilheteria. O organizador das filas e do movimento da portaria do cinema aproveitou a limitada luz do edifício Ok e se deslocou calmamente até a esquina do prédio. Ao se aproximou e viu a nossa movimentação em uma nas esquinas da Rua Joaquim de Souza com a Praça João Pessoa.

Ele apressou o passo em direção a Daciflay que estava mais próximo dele. Foi quando eu ouvi do nosso amigo a frase: - Sujou! Corre, lá vem Zé Maleiro. Nesse instante, eu vi quando Zé Maleiro chegou a tocar no braço de Daciflay, mas ele foi mais rápido e, juntos corremos desesperadamente em direção da Praça da Cultura e, de lá, cada um tomou seu rumo em direção das suas casas. No dia seguinte o terremoto desabou sobre o porteiro. Seu Calo Paulino, que não costuma vir pela manhã ao seu cinema, chegou depois das 7 horas da matina ao Cine Éden. Esperou friamente o porteiro que chagava, sempre às 8 horas, para demiti-lo da atividade que exercia no seu cinema.

Sobre a conversa entre os dois nessa manhã, não seu dizer como foi. Só sei que o coitado do porteiro foi substituído e, Daciflay, passou um bom tempo sem aparecer se quer na calçada do Éden. Quanto a nós - Eu, Letto e Gilnécio, já que Daciflay não havia revelado ao porteiro quem estava com ele nessa operação e, nem o próprio Zé Maleiro, na noite do ocorrido fraga, tinha conseguido identificar quem estava com Daciflay vendendo as entradas, tivemos por um triz salvaguardado os nossos rostos. Mesmo assim, só fomos assistir o filme ‘Terremoto’ na ultima sessão desse filme no Cine Éden. Pelo menos foi esse o meu caso.


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leitura da foto: 
Praça (Av.) Presidente João Pessoa (Foto colorizada). 
Tabuleta de divulgação do Cine Éden na Praça João Pessoa anunciando o filme do dia. Cartaz com os dizeres: Éden, hoje - livre, 'Uma Garota de Sorte'. Ing. Cr$ 3,00

3 comentários:

Anônimo disse...

Travessuras interessantes e perigosas, kkkkk.agradáveis lembranças...

Anônimo disse...

História bem interessante

Anônimo disse...

Na época, tínhamos entre 12 e 13 anos. Inocentemente embarcamos nessa, só para ter direito a uma entrada no Cine Éden.