Escrevo na cozinha da minha
mãe, em Cajazeiras, na Paraíba. Aqui deste lado dos trópicos, durante o dia,
não corre vento, sequer um raio de brisa depura as noite altaneiras do luar das
caatingas. Parece um sonho, cenário de sonho. Há tempos desfigurou-se a face
colorida do ambiente sertanejo após a queda das águas celestes. Se o ar se
atreve a bolinar as poucas folhas das árvores, surge também um mormaço
indiscreto que mortifica os ossos. O cristão não aguenta sem reclamar. Deita no
chão de cimento, vai ao pote mil vezes durante a tarde, procura a melhor sombra
entre o oitão dos largos e altos casarões mais antigos do lugar. É a luta
desigual entre o sertanejo e as condições naturais. Aquele, um adepto das
acomodações, um insurgente das variações climáticas que o assola sem piedade a
cada quadra anual. É a luta pela sobrevivência e o estigma de morar na porta de
entrada do inferno. O sertão em tempos sem chuva é a morada do diabo.
Mas estou em casa de minha
mãe e aguardo a resolução de problemas pessoais. Enquanto as coisas não
acontecem, vou numa rotina que pouco me agrada. Desde quinta-feira, acordo
cedo, e logo faço pequenos passeios pelas ruas sujas e sem graça da cidade.
Visito ali um amigo, aqui um conhecido distante. Lembro (e não faz tanto tempo)
do tempo em que todo dia passava esse mesmo caminho. Tenho o sentimento que
deprimia o caminheiro. Detestava passar entre as casas de comércio, dobrar
essas esquinas nos primeiros raios da manhã. Enquanto caminhava, testemunhar
ninguém dizer bom dia, como vai, tenha um ótimo trabalho. Depois, passe cá mais
tarde para trocarmos um dedo de prosa.
Está feia a cidade, como
jamais esteve. Seu Açude Grande, a imensa roda de água que liga a urbe ao
passado de glória dos primeiros habitantes, não mais comove o coração. Perderam
nele a magia e a ternura de um símbolo histórico importante que dizia coisas
sobre lazer e memória para todo o sempre. O açude, a água dele que se bebia
para o eterno feitiço de amar a cidade, é como se não existisse. Nele se
afogaram a devoção e amor pela terra. Nele está enlameado qualquer sentimento.
Tudo, a partir dele, não faz sentido. É um submundo de esgotos e mágoas. Ainda
que faça a decência de resfriar o clima que estressa o solitário neurastênico,
aos meus olhos perdeu a beleza. Esse seu ar de titã assevera a toda hora que
esta cidade jamais me amou.
Ao fim da tarde, recordo o
conversar nas calçadas; um dos dados mais vivos dessas bandas sertanejas. Pena
que a feiúra da cidade não deixa que os versos de Vinicius atravessem a
conversa. Hoje, as casas não são tão lindas. São feias, assim como são feios os
políticos e as polacas, os bares e as praças, os que vão à missa e os que rezam
no templo. São feios os homens e as mulheres, as plantas e os animais. Por fim,
tudo está pouco atraente. Nada agrada. Aqui, parece que ninguém mais deseja que
nada preste. Deram fim a tudo. Adeus àquela cidade que pintei muitas vezes com
tintas bonitas e que não borravam.
À noite, ao menos, as crianças correm vivamente. Como em todo lugar elas acendem a esperança e dão à alma uma riqueza de mistérios que ninguém explica. Enquanto uns tantos veem as novelas, elas expressam com gritos de alegria que apesar de tudo talvez nem tudo esteja perdido. Conseguem tirar essa sisudez grosseira. Arrancam um pouco essa tristeza de não se amar mais a quem tanto se amou. Essa tristeza que só não é maior porque estou em casa de minha mãe, e aqui me sinto protegido do restante da cidade.
fonte: https://cronicascariocas.com/colunas/cronicas/em-casa-da-minha-mae/
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