segunda-feira, 3 de janeiro de 2022



Não vou ser prolixo. 1971 mudamos para este local. Em cima, duas casas coladas. Quase interligadas. Abaixo, uma casa maior. Até 1979 ficamos na casa de cima, à direita (abaixo da casa maior). Na foto preto e branco, estou com minha mãe. Dá para ver que o muro era baixo, a escada, com falhas e difícil de subir. Aqui, tinha que ter ajuda. Se quebrasse o fêmur, ficava atrás. Na última sala, onde tinha única televisão. Para subir com gesso até abdômen, era tortura. O radinho de pilha era companhia.
Em 1973, voltando do Rio para grande cirurgia, passei um ano de cadeira de rodas. Para descer a escada e subir, quatro amigos. E, eu imaginando queda fatal.
Para subir... Pior. Mas, não ficava trancado. A turma de amigos e amigas era sensacional. Citaria cada pessoa. Mas, com constância, Carlinhos, Coriolano, Raquel, Patrícia, Alexandre e "o gordo". Grande Tuca que já se foi em acidente de carro. A turma da rua era muito unida. Carlinhos assoviava e; todos sabiam. Não me sentia só. E, era parte do todo. Tinha ainda Maurício... João Celso, Flaviano, meu primo.
Dr. Genival Veloso já morou na casa de baixo.
O dinheiro era curto. Éramos felizes com kitute Wilson e pão. Tinha música , dança , bagunça... E, minha mãe trabalhando de 7 as 19 h. Ficava uma "República de crianças e adolescentes". Luiza não estava mais conosco. Mas, o coletivo ajudava. Não era "o senhor das moscas". Rolava afeto e, quase nenhuma hierarquia. Sem assaltos, roubos e violência.
Comprávamos na bodega do seu Salvador. Fiado.
Foi nesse local que vimos, pela TV, o terrível desastre na lagoa. Quem é da época lembra. Um barco virou e matou muitas pessoas na nossa querida lagoa. Tive pesadelos.
A morte em acidente da jovem Cristina, aos 15 anos. Jovem bela e cheia de vida. Cortejada pelo meu irmão e, os meninos da rua. Fizemos um assustado (lembram como era?), para homenagear Cristina.
A morte dela mexeu com finitude. Volta Shakespeare na minha vida. Hamlet atormentando pelo fantasma do pai morto... A morte assassinou Cristina muito cedo. Era a quase Julieta de muitos Romeus. Inclusive meu irmão.
O luto era coletivo. A morte trazia luto. Nunca banalidade. Como o acidente da lagoa. A morte cruel da Ana Limeira e Pedro... Essas mortes traziam tristeza, amargura e comoção para o coletivo...
Passávamos dias calados.
São muitas estórias. Dá um livro. As mortes do Elvis, Leila Diniz, John Lennon...
Eu, com fratura, ficava no fundo da casa. Dormia, brincava de boneco, lia gibis... Via TV. A paisagem da rua era utopia. Só imaginava. Nem ao quarto tinha acesso.
Mas, amigos e amigas vinham ver Tv comigo. Só dois canais. Sem controle remoto.
Hoje me sinto muito mais solitário. Nas gaiolas chamadas edifício, reina a incomunicabilidade. Antonioni e seus filmes... Bergman. Godart.
Sim. Eu assistia quando raramente passava filmes desses diretores.
Pouco entendia, mas, sentia.
O "Desprezo”, do Godart com Brigitte Bardot, me marcou muito. Vi que estávamos caminhando para uma sociedade do "desprezo", inclusive nas redes sociais...
Uma vitrola velha fazia a festa. Rod Stuart em início de carreira, a fase boa do Roberto Carlos... Rita Lee... Barry White... Caetano, Gal, Chico e Gil...
A discoteca. Crise do petróleo... Regime militar.
Eu escrevia muito sobre atualidades. Com olhar crítico. Sim. Ou, Quixotesco? Tanto faz.
Meu avô morreu nessa fase. Outra bomba H no meu coração. E as fraturas não davam trégua. Via o marquês de Sade me visitar com constância. Sem Justine...
Mas, a turma era unida. Um pão com doce de goiaba e, música, era a norma de um comunismo primitivo e sem jogos de poder. Uma salsicha dividida para 10 era a redenção.
Ontem (02/01/2022), ao tirar fotos do local, senti o “Deserto vermelho” do Antonioni... A solidão mórbida do velho ex-professor em “Morte em Veneza“...
A rua não existe mais. Só bares e lanchonetes...
Não vou repetir o que já coloquei.
A nova fase da revolução industrial vai além da anomia do Durkheim... Zumbis perambulando no nada guiado por mercadorias e; virando mercadorias.
O capitalismo venceu? Talvez. Até em Cuba...
Prefiro comer kitute Wilson com grapette ouvindo um disco arranhado de Rita Lee...
Ovelha negra? Melhor do que ser branca servil e guiada por pastores...
Como sinto falta da "falta" que desejava o "nirvana” de gente comendo um chocolate baton dividido para dez pessoas...
E, brincando de "adedonha"...
Hoje, dígito a mercadoria que sou... Selfie do desejo sem fim... "Machuca"!

Hermano Almeida




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