sexta-feira, 12 de novembro de 2021

ROMANCES

por: João Batista de Brito


Contam que a história aconteceu na João Pessoa dos anos 1950. Mas não garanto.

Benício estava preocupado com a esposa. E não era de agora. Já fazia tempo que Diana andava estranha, aérea, desconcentrada, alheia às coisas da casa. E alheia a ele também.

Até na cama estava distante, sem corresponder aos seus agrados, na maior parte das vezes, recusando fazer amor. Ele bem que tentava ser compreensivo, paciente, mas nem sempre era fácil. Um homem com seu vigor físico precisava de uma mulher sempre disponível. E ele não era aquele tipo de homem de ir procurar fêmeas lá fora.

Aparentemente, o problema surgira depois que Diana passou a frequentar a Biblioteca da cidade, e a tomar livros emprestados. Só vivia agarrada com um livro e praticamente não fazia mais nada na vida...

O que aqueles livros tinham de tão atraente, ele não sabia, pois, homem sem instrução, Benício nunca fora afeito a leituras, a não ser a dos papéis necessários aos seus negócios, que eram muitos.

O primeiro livro que viu em casa, posto em cima de uma cômoda depois de lido, trazia um título estranho, “Dom Casmurro”, e ele não tinha a menor ideia do que tratava. Afinal, Casmurro nem nome de gente era.

Em uma de suas idas a Recife pra tratar de negócios, Benício, encontrou, um dia, por acaso, um velho amigo, Xavier, com quem cursara o curso primário. Depois dos abraços saudosos, foram tomar um café numa casa de lanches próxima. Residente em Recife havia anos, Xavier era jornalista e escritor nas horas vagas. Pois, no meio da conversa, Benício lembrou-se de aproveitar a oportunidade pra perguntar sobre Dom Casmurro – um livro que, com certeza, o amigo conhecia muito bem. De que tratava?

De bom grado, o amigo fez pra ele um breve resumo do enredo e, com uma pitada de ironia, perguntou se Benício estava agora interessado em literatura. Benício desconversou, mas, mesmo assim, quis saber se a tal Capitu do livro, afinal, tinha mesmo sido infiel ao Bentinho. A resposta - “ninguém sabe”- foi insatisfatória, mas, de todo jeito, aquilo deixou Benício com uma pulga atrás da orelha: então era um livro sobre traição conjugal que a sua Diana lia.

Um segundo livro aparecido em casa, “O primo Basílio”, manteve a pulga na orelha de Benício. Na próxima viagem a Recife, não fez outra: procurou o amigo Xavier e lhe perguntou se ele conhecia o tal livro. Claro que conhecia, e adorava. E pagou um jantar pra Xavier só pra ouvir a história de “O primo Basílio”. E não deu outra: era traição conjugal na batata.

Como Benício sabia que Xavier vivia em situação financeira difícil, ofereceu para lhe dar a ajuda  que ele quisesse - contanto que o amigo, vez ou outra, lhe orientasse nessas coisas literárias, isto sem ter que saber de seus motivos. Xavier achou estranho, mas - fazer o quê? - precisava da grana, e, afinal, era até divertido ser pago para relembrar o enredo de obras que amava.

Em seguida, veio outro livro chamado “Ana Karenina”, que deixou Benício cada vez mais intrigado, pois, pelo depoimento de Xavier, seguia a mesma linha da mulher adúltera. Depois foi “A letra escarlate”, que deixou Benício pasmo, pois a mulher traidora ganhava uma rubrica no peito, para a cidade toda saber da sua falta de caráter. Mas, o pior foi o próximo, “Madame Bovary”, história de uma mulher que não teve só um, mas vários amantes, um atrás do outro. Como é que Diana, a sua Diana, podia gostar de livros assim?

Benício estava horrorizado. Não admira que Diana estivesse tão perturbada. A questão era: por que ela lia aquele lixo? E outra questão mais geral: por que a Biblioteca do Estado adquiria e mantinha toda aquela imoralidade? Bem que sua avó dizia: o mundo está perdido, e olhe que sua avó, que era analfabeta, se referia ao cinema, e só por causa dos beijos na tela – imagine se ela tivesse acesso à literatura.

Outra coisa que Benício não entendia. Não eram romances novos, modernos, de agora. Eram livros do Século passado, e outra coisa intrigante, todos escritos por homens. Que homens eram esses que adoravam escrever sobre traições femininas?

Não adiantava Xavier lhe explicar que as heroínas daqueles romances não eram doidivanas, mas, figuras trágicas, por contingências da vida, “mulheres apaixonadas fora do casamento”, e os romances constituíam mergulhos profundos na alma feminina.

Com essa, Benício deixou de procurar Xavier. Não adiantava ficar se atormentando assim. O que tinha que fazer, tinha que ser feito em casa. E ia, sim, dar um basta naquela história toda.

Naquele dia voltou pra casa decidido a pôr fim às leituras de Diana. Entrou em casa com passos firmes, porém, antes de se aproximar da esposa, viu mais um livro sobre a sua mesa de leitura que, ao contrário dos outros, trazia nome de mulher na capa e o título era: “Perto do coração selvagem”.

E foi onde Benício sentiu que estava, ao chegar perto da esposa.



fonte: (face do autor) https://www.facebook.com/photo/?fbid=10217360044992915&set=a.4826176152100

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