por: João Batista de Brito (escritor e critico de cinema e literatura)
Toda
história tem seu tempo e seu lugar. Esta não faria sentido, a não ser na
provinciana João Pessoa dos anos quarenta.
A família
era das mais tradicionais e o casarão ficava no Parque Solon de Lucena, na
época considerado área nobre da capital. Filha única, Doralice fora criada com
o zelo esperado: babá, aula de piano, Aliança Francesa, ginásio no Colégio das
Lourdinas, secundário na Escola Normal, e tudo mais cabível a uma moça de
família rica, ainda mais filha única.
Foi no tempo
da Escola Normal, ali na Praça João Pessoa, que os problemas apareceram. Não se
sabe como, Doralice conheceu esse rapaz, Júlio, e, em pouco tempo começaram um
namoro que, com certeza, se a família soubesse, desaprovaria de chofre.
Residente no bairro de Jaguaribe, humilde balconista de loja, o rapaz estava
longe de ter as credenciais necessárias. Os dois sabiam disso e por isso mesmo
se mantinham furtivos, feito dois criminosos.
Só conheciam
o caso algumas das colegas da Escola, e, possivelmente, algumas das irmãs e
mães dessas colegas, e... O fato é que o namoro chegou aos ouvidos da família,
e daí a pouco, estava peremptoriamente encerrado. Se Júlio sofreu, não se sabe,
mas, Doralice ficou mal, muito mal. Filha obediente engoliu o veto, a
separação, a dor...
Passou-se o
tempo e, com as estratégicas providências da família, eis que, anos mais tarde,
apareceu “o homem certo” para Doralice, esta agora já nos seus vinte e um anos
de idade. Seis anos mais velho que ela, Constantino era um alto comerciante,
dono de vários negócios na cidade. Com apoio e reforço da família, o namoro
logo virou noivado, que logo virou casamento.
E assim
Doralice foi se adaptando, como podia, a essa nova forma de vida, em sua
confortável nova residência, uma das mais elegantes da rua Duque de Caxias.
Não é que
não gostasse de Constantino, mas sentia que seu afeto por ele – um homem
bondoso e simpático – era, em princípio, diferente do que sentira por Júlio.
Havia carinho, sossego, respeito, mas não havia chama. Por isso, toda noite
rezava à Virgem Maria para esquecer de vez o passado e aceitar o presente.
Aparentemente
a Virgem Maria lhe atendeu ao pedido. Já fazia cinco anos de casamento, e tudo
caminhava dentro da normalidade esperada. Na condição de esposa e dona de casa,
Doralice vivia se não feliz, ao menos tranquila, e, mais importante, em paz com
sua consciência.
Essa paz
começou a ser ameaçada naquele dia em que decidiu que as roupas de cama e mesa
da casa estavam gastas. Conversou com o marido, o qual, rindo do problema, lhe lembrou
de que as Lojas Medeiros e Cia, ali na subida da Guedes Pereira, eram da
família: era só ir lá, escolher e mandar entregar. Nem pagar precisava,
completou ele, ainda rindo.
Ela foi e...
Susto! Quem a atendeu? Sim, ele, Júlio, o mesmo Júlio que, agora que o revia,
sabia nunca haver esquecido. Estava mais maduro, porém, formoso como sempre,
com sua sensualidade morena, o brilho no olhar, a fala doce e o sorriso
encantador. Sem quaisquer referências ao passado, Doralice, embora trêmula e um
pouco tonta, desempenhou como pôde o papel de freguesa, e ele, aparentemente
muito bem, o papel de atendente. Entre os tecidos mostrados, ela não deixou de
notar o anel em sua mão esquerda, visão que não sabia se a acalmava ou se mais
a perturbava. Na despedida, trocaram olhares demorados e enigmáticos, talvez –
quem sabe? – esperançosos perigosamente esperançosos.
Na noite
daquele dia Doralice não conseguiu dormir. E não houve chá de camomila que a
acudisse. Então seu ex-amado era empregado de seu esposo! O destino estava
maldosamente brincando com ela... E a insônia persistiu por noites e noites.
Notando-a
abatida, o marido aconselhou-a a divertir-se um pouco. Ele mesmo não gostava de
filmes, mas, a cidade estava cheia de cinemas. O Rex, o Plaza, o Brasil, estavam
próximos, e ela podia aproveitar a companhia da amiga vizinha Carlota – por que
não?
Assim, numa
sexta-feira qualquer Doralice revolveu aceitar os insistentes convites da
vizinha Carlota, e foram assistir à primeira sessão noturna do Cinema Filipéia,
aquele que ficava ali por trás do Palácio do Governo. Sem prestar atenção ao
cartaz, compraram ingresso e viram o filme.
Sem
conseguir conter o choro, da primeira à última cena, Doralice saiu do cinema
arrasado, bem pior do que já estivera em toda a sua vida. Do modo mais cruel
que se possa imaginar, o filme contava a sua história. Havia eventuais
diferenças nos enredos, o da tela e o dela, porém, as tristes implicações
emocionais eram as mesmas. Não era à toa que o filme se chamasse “Desencanto”.
O fato é
que, depois daquela dolorosa sessão no Filipeia, Doralice decidiu: cinema nunca
mais!
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