quarta-feira, 14 de julho de 2021

EPAMINONDAS

por: João Batista de Brito 


Em conversa casual, contei  um dia a história ao escritor Geraldo Maciel, amigo saudoso, que por conta própria decidiu transformá-la em literatura. E o fez muito bem. Aqui, porém, reconto-a, tal qual a ouvi de uma senhora idosa, lá pelos meados dos anos sessenta.

Segundo a minha idosa informante, a coisa teria acontecido em Campina Grande, nas primeiras décadas do Século Vinte, tempo atrasado em que as casas eram iluminadas com candeeiro, e a comida era cozida à lenha. Numa das ruas principais da cidade, morava essa viúva, Dona Anastácia, uma mulher de seus cinquenta anos, mas ainda vistosa e saudável. Solitária e saudosa vivia sozinha, na companhia de uma empregada de longa data.

Pois bem, de tão saudosa, Dona Anastácia mandou um dia fazer uma estátua do marido falecido, o respeitável senhor Epaminondas de Melo Fonseca.

Lá para os lados de Bodocongó vivia esse artesão, conhecido do casal, que fazia maravilhas em madeira. Dona Anastácia lembrou-se de procurá-lo, e lhe pagou um bom dinheiro para que esculpisse, na melhor madeira de seu estoque, a estátua de corpo inteiro do esposo. A partir de uma foto e das lembranças, o artesão engendrou a sua obra prima, tão parecida com o original que impressionou até a própria viúva.

Orgulhosa da iniciativa, Dona Anastácia instalou a bela estátua do esposo na sala de estar, em posição ostensiva, para ser vista por quem passasse na rua. Para tanto, mantinha abertas as quatro janelas frontais da casa. E ao receber alguma eventual visita, se apressava em apresentar: “Este é o meu Epaminondas”.

Um dia, parou em sua porta um mascate, vendendo toalhas, lenços e outros tecidos. Ela gostou das mercadorias e mandou-o entrar, claro, fazendo a apresentação de praxe: “Este é o meu Epaminondas”. Negociaram e ficou certo que ele ficaria voltando todo mês, já que o pagamento fora dividido em suaves prestações.

Assim, todo mês lá estava o simpático mascate no sofá de Dona Anastácia, com seus olhos claros, seu bigode charmoso, seu sorriso cativante e seus gestos educados. Independente de pagamentos, e sem que os dois se dessem conta, as visitas foram ficando mais frequentes e mais alongadas. Se se puder dizer, mais aconchegantes – agora de janelas fechadas.

Tão aconchegantes que Dona Anastácia começou a achar que a presença de Epaminondas na sala estava de alguma maneira, se tornando inconveniente. E um dia, antes de o mascate chegar, depois de alguma hesitação, se decidiu: chamou a empregada e as duas passaram Epaminondas para a segunda sala da casa.

Ocorre que o clima de amizade entre Dona Anastácia e o mascate foi se fortificando. Agora, pouco falava de negócios: o assunto era muito mais a solidão dela, as decepções amorosas dele - essas coisas do coração... E de como ansiavam por um dia poder reaver a felicidade que mereciam.

Com a assiduidade do mascate, Dona Anastácia notou que, mesmo na outra sala da casa, a presença de Epaminondas continuava incômoda. Pensou em pô-lo no corredor, mas viu que era muito apertado, e então sugeriu à empregada que o deslocassem para a cozinha. Como a empregada protestasse veementemente, alegando que o espaço da cozinha não era grande, e que Seu Epaminondas iria atrapalhá-la em suas tarefas diárias, Dona Anastácia concluiu que, sendo assim, era melhor mesmo encaminhar Epaminondas lá para trás, para a área de serviço. E assim foi feito.

Acontece que a área de serviço, nessa residência antiga, ficava nos fundos do quintal e, repleta de cacarecos, era, ocasionalmente, visitada pelas galinhas, patos e jabutis que a dona da casa criava. Para um vizinho curioso que espiasse por cima do muro, seria, com certeza, patética a visão: circunspecto em sua pose, aquele homem de madeira rodeado de cacarecos e bichos.

Certo dia, a visita do mascate prolongou-se tarde adentro, e daí a pouco o sol já estava se pondo. Animada, Dona Anastácia fez a sugestão de que o seu companheiro de confidências ficasse para jantar, proposta que foi aceita de imediato.

Aceito o convite, Dona Anastácia lembrou que não havia combinado nada com a empregada. Pediu licença, levantou-se e foi lá dentro saber do cardápio da noite, confiante de que nele estivesse a deliciosa canja em que a empregada era exímia.

“Não fiz canja, não senhora, nem coisa nenhuma” – disse a empregada, e prosseguiu: “A senhora lembra que lhe avisei ontem que a lenha para cozinhar estava acabando e a senhora não tomou providência nenhuma?”. E perguntou o óbvio: “Como é que eu vou fazer canja sem lenha?”

Foi então que a ideia passou pela cabeça de Dona Anastácia, ideia que ela descartou, e no mesmo instante, abraçou. E, decidida, deu a ordem à empregada:

“Mete o machado em Epaminondas”.



fonte: https://www.facebook.com/photo?fbid=10216843525760257&set=a.4826176152100

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