por: Mariana Moreira
foto https://www.facebook.com/mariana.moreiraneto |
As
vestes simples e rotas se alinham e perfilam o corpo franzino. Camisa aberta no
peito mostrando dobras de uma barriga ávida de alimento. A pele tostada de sol
traz vincos de tempos de existência e experiências de vida, enrugando levemente
o rosto de traços que evocam personagens de Guimarães Rosa. Os olhos escondidos
de tristeza e incertezas se escondem atrás das escuras lentes dos “óculos de
descanso”, desses que procriam em barracas de camelôs. Os pés de unhas gastas e
calcanhares rachados se aninham em sandálias de dedo.
A
velha bicicleta de origem indefinida pelo tempo traz marcas da ferrugem que
pontilha algumas peças com tons ferrosos. A bicicleta em si já traz impressa a
história de tantos consertos e remendos que lhe desconfigura a originalidade.
Nos guidons uma profusão de sacolas plásticas penduradas, grávidas de bugigangas
tantas e não reveladas.
Ele
diligentemente estaciona sua bicicleta no meio fio de uma rua principal da
cidade e, na calçada, inicia seu ofício cotidiano. No pescoço uma caixa de som
portátil com microfone acoplado. Como fundo musical um animado e esfuziante
forró, daqueles que mexem com as estruturas ósseas, musculares e afetivas até
mesmo dos mais empedernidos. Aterrissado na calçada, baixa o fundo musical e
começa a propagar informações que, tangidas pelo vento e misturadas ao
burburinho dos carros, buzinas, vozes humanas, se indefinem quanto ao conteúdo.
Se misturam propagandas de lojas e comércios vários, pregações de teor
religioso, relatos escoteiros de vivências, desejos de reconhecimento. E segue
o métier de inventar a vida como se a arte de viver fosse definida e delimitada
pelas fronteiras alcançadas por sua bicicleta, sua caixa de som, seu microfone
e a calçada da rua transformada em palco para seu espetáculo.
De
onde veio, que laços familiares cultiva, quais sonhos e esperanças alimenta?
Informações desnecessárias a pressa dos que circulam a rua e o transforma num
invisível incômodo a entravar o fluxo natural das coisas, das gentes, das
tarefas. Seu nome é uma informação trivial para a ligeireza de códigos de
barra, de senhas de acesso, de mensagens virtuais monossilábicas. Sem
interesse. Somente mais um entre tantos anônimos que se espalham por calçadas,
bancos de praças, marquises, improvisando criatividade e inventando viveres
pelo mero exercício da vida.
Mas,
o que importa!
Apenas
mais um insignificante personagem a obstruir calçadas e irritar ouvidos.
E
como esta insignificância me seduz e fascina. E somo outros tantos
insignificantes que, presentes ou em memória, me alentam o humano e afaga o
gentil em mim.
E
sinto saudades de Noventa e Nove, Cachimbo Eterno, Chica Mão Branca, Rosa Beba
e tantos que, invisíveis a muitos, para mim alinhavam os retalhos do meu
existir.
fonte: Jornal
A União e Gazeta do Alto Piranhas, edição de 25 de junho de 2021.
Um comentário:
Texto simplesmente brilhante.
Postar um comentário