por Eduardo Pereira
Por volta das dezoito horas, Hora do
Ângelus, Padim, meu avô materno, se recolhia ao seu quarto para rezar. Quem
passasse pela sala de janta, como era dito o ambiente de refeições da casa,
ligada ao quarto dele, ouvia sua voz meio rouca, como se estivesse sussurrando
no ouvido de Deus, devotando temor e rogando bem-estar na vida eterna.
Ajoelhado diante de seu pequeno
oratório de madeira - meu olhar curioso de criança via pela porta entreaberta
sem segredos - portinhola de vidro, com imagens de santos e, santas de gesso
representando a presença física de sua fé, sempre uma vela acesa clareando a
pureza de sua alma, circunspecto, ele falava com Deus, e Deus falava com ele.
Era a certeza inabalável dele.
Pelos dedos calejados de roça, mãos
enrugadas, o terço rodava a cada Pai Nosso e Ave-Maria. E mais Salve Rainha Mãe
de Deus e outras orações do repertório católico. Nesse instante, criança, eu
tinha consciência de que não se deveria fazer algazarra naquele momento sério
de reflexão de meu avô com Deus, que eu sabia ser um Ser supremo, mesmo
inconsciente. E se, por acaso, estivesse passando nesse momento fazendo zoada
por lá, tendo esquecido aquele momento misterioso, de imediato um pedido rígido
onomatopaico de silêncio, shiiiiiittt, soava no ar. Era minha tia. E ai, ai, ai
de não respeitar.
Esse cenário descrito acima estava no
Sítio Rita, de meu avô, onde eu passava longas férias de fim de ano na
meninice. A igreja mais próxima de lá ficava em Monte Horebe, cerca de uma
légua. Era uma distância enorme para época. Hoje, asfaltado, com bicicleta,
moto, carro, difíceis então, é um estalar de dedos. Ah, as missas em Horebe
eram apenas aos domingos, e às vezes só de quinze em quinze dias, com padre
Linhares, de Bonito de Santa Fé, cidade maior e próxima.
Pegue esse contexto descrito acima e
teremos o normal antes e hoje nos rincões Brasil afora. Como é sobejamente
sabido, para falar com Deus não se tinha, e não se tem a obrigatoriedade de
estar presente em um templo. É dito que, quem quer falar com Deus, basta ter
fé. Inescapável não citar a canção de Gilberto Gil: “se eu quiser falar com
Deus, tenho que ficar a sós”.
Mas cada um tem a interpretação e o
jeito de ser. Falei tudo isso por causa da polêmica que um ministro, não de
Deus, mas do Supremo, não Deus, mas STF, que liberou a abertura de igrejas no
Brasil em decorrência de restrições impostas por prefeitos/governadores por
causa do arrasador número de mortes da covid-19, e outro ministro mandou
restringir. A pendenga religiosa foi o cento das atenções jurídicas no Brasil.
Pareceu até um Fla x Flu místico. No fundo no fundo, muita gente desconfia que
a questão gira em torno de arrecadação de grana, não de fé.
Se eu falasse para meu avô, caso fosse vivo, que o Supremo, instância jurídica, é que dava ordens para as igrejas abrirem ou fecharem nessa pandemia, ele responderia, pitando seu cigarro de fumo de rolo enrolado em palha de milho: “Meu fie, pergunte pra padre Linhares se não é Deus que é Supremo”. A fé reinante era que as almas boas iriam para o céu.
Logo após ele recitaria sua poesia que fala o seguinte, e escrevo aqui de cor o que restou em minha memória: “A morte é sem piedade. Mata padre, mata doutor, mata juiz, mata jovem, mata velho...” E dava o fecho com voz empostada, olhando nos meus olhos azuis, como os dele: “A morte é sem piedade. Matou até Jesus Cristo!”. O nome dele era João Martins de Oliveira.
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