terça-feira, 9 de março de 2021

O imperador da Pedra do Reino

por: Waldemar José Solha 


Com o toque de Midas de Bráulio Tavares e do autor de O Auto da Compadecida”, eis o "ABC de Ariano Suassuna".

Tenho esse livro - lançado pela José Olympio Editora - entre algumas preciosidades, como: "O Escorpião Encalacrado", de Davi Arrigucci Jr. (sobre a obra de Cortázar); "Hamlet e o Complexo de Édipo", de Ernest Jones (que aplica a teoria freudiana no príncipe da Dinamarca e no próprio Shakespeare);

"Como se Faz um Filme", de Eisenstein (em que ele conta como criou “O Encouraçado Potenkin”); "A Filosofia da Composição", de Edgar Allan Poe (sobre o surgimento e evolução de seu célebre poema "O Corvo") e "Signo e imagem em Castro Pinto", de João Batista B. de Brito.

Como intelectual enciclopédico que é, tão fissurado pelas artes quanto pela ciência e tecnologia, avesso a todo mistério e segredo - se desvendável -, Bráulio revela que foi buscar a ideia estrutural desse perfil biográfico de Ariano em obras como o "ABC de Castro Alves", de Jorge Amado, e o “ABC de Jesuíno Brilhante”, de autor anônimo (reproduzido em "Heróis e Bandidos", de Rodrigues de Carvalho). Mas esse seu livro me remete diretamente, também, ao "Dicionário Khazar", de Milorad Pavić, um romance sérvio que marcou época nos anos 80.

O resultado de todas essas influências é o retrato cubista, por sua fragmentação temporal, espacial e temática, de um personagem fascinante (Suassuna), que nasceu num palácio, o da Redenção, teve o pai assassinado no Rio, viveu a infância e a adolescência em Taperoá, sertão paraibano, estudou Direito e Filosofia no Recife, ficou famoso por suas aulas-espetáculos,

por seus ensaios, por uma peça de teatro (O "Auto da Compadecida"), por um romance de título estranho ("A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta"), por suas incursões nas artes plásticas e na poesia, por ter fundado o Movimento Armorial, etc, etc... E bote etc. nisso! Entrou na Academia Brasileira de Letras. Foi tema, no carnaval carioca, do samba-enredo "Aclamação e Coroação do Imperador da Pedra do Reino". Foi assunto do documentário "O Senhor do Castelo", de Marcus Vilar. Foi nomeado - aos oitenta anos - secretário de cultura do governo do estado de Pernambuco e - consagrado - seguiu de rota batida para a imortalidade, devidamente coroado pelos louros do plim-plim.

Claro que na ficha catalográfica do ABC consta “Biografia”. Claro que na d“Os Sertões” de Euclides da Cunha não há registro de um "romance". Mas é como eu li todos dois. Com mais ou menos apego à realidade nua e crua, tem surgido toda uma série de famosos romances-verdade, nonfiction novels ou romans-a-clé, como "A Sangue Frio" ("In Cold Blood"), de Truman Capote, "Pé na Estrada" (“On the Road”), de Jack Kerouac, e "Coração das Trevas" ("Heart of Darkness"), de Conrad, e até eu parti para a mesma senda na parte intitulada “A Gigantesca Morgue” na obra "História Universal da Angústia", ao juntar - numa série de contos de extrema violência -, a condensação de 126 reportagens nessa linha, colhidas num período de dez anos. Esse artifício leva o leitor a receber a experiência da realidade com uma força extraordinária. No "ABC", a densa conjunção de solidez, argúcia, clareza e beleza faz com que o livro salte - no meu entender - do terreno simplesmente biográfico para o romanesco. Há um momento em que o próprio Bráulio diz, nesse seu trabalho:

Quanto mais verdadeira uma coisa, mais bela. Cita Keats:

Beauty is truth, truth Beauty.

Beleza é verdade, verdade, Beleza.

E a Beleza, segundo Plotino (citado por Ariano, idem por Bráulio), é… os seres em máximo de ser. 


O livro mostra como Suassuna, que diz ser feio desde menino, mas apaixonado pela beleza, torna-se, com o tempo, um ser "em máximo de ser", dotado, portanto, de enorme beleza, pelo que passou a ser intensamente amado por todo o país. "A década de 1990 - diz Bráulio - trouxe-lhe notoriedade pessoal de um modo que ninguém seria capaz de supor”. A tal ponto, anota, que surgiu "um grau de impaciência do autor com a quantidade de compromissos a que é submetido". De fato, ele viveu, no final, numa roda-viva "de aulas, feiras-de-ciência, artigos, mesas-redondas, programas de televisão, homenagens, semanas culturais, entrevistas para jornais, orelhas de livros, depoimentos para vídeos e filmes ou revistas, cartas de recomendação para instituições culturais, apresentação em catálogos de exposições”, e a lista prossegue interminável.

Como diz a raposa ao nosso distante Pequeno Príncipe:

“Tu deviens responsable pour toujours de ce que tu as apprivoisé.

- O que é apprivoisé? - pergunta-lhe o menino.

Apprivoiser é "domesticar, domar, amansar”, diz o dicionário francês-português. Mas a tradução corrente da frase, é "Tu te tornas responsável para sempre por aquilo que cativaste". E o eco responde "domesticaste, dominaste, amansaste”. Parece que Ariano conseguiu, na verdade, em sua luta pela preservação de nossa cultura burro-xucra, domá-la, dominá-la, monopolizá-la - apesar do massacre alienígena. Não só pelo seu trabalho de autor, como pelas influências que exerceu e exerce.

O "ABC de Ariano Suassuna" foi dado à luz ao sol da onça caetana. Louvado seja ele, além de seu autor e de seu tema.



W. J. Solha é dramaturgo, artista plástico e poeta. fonte: https://www.carlosromero.com.br/

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