domingo, 28 de fevereiro de 2021

A QUAL DESERTO PERTENCE ESSA FLOR?

por: Mariana Moreira
moreiramariana@uol.com.br


A pergunta se forja e agrega-se às estrangeirices marianas quando me sinto integrante de uma ínfima minoria de pessoas que não traz como item indispensável de sua casa um jarro como a flor do deserto.

Não consigo precisar o momento e as circunstancias em que a flor do deserto ganha a posição de planta decorativa necessária, prioritária e exclusiva em todas as casas. Mas, como as enxurradas que, nas madrugadas sertanejas, alargam riachos e córregos de barrentas águas benfazejas anunciadas de fartos tempos de inverno, a flor do deserto vai ocupando todos os requisitos de espaços e prerrogativas de bom gosto paisagístico.

E fotos abundam nas redes socais com relatos, alguns pueris, e tantos outros repetitivos e inócuos, da beleza da flor desabrochando, do seu colorido, de sua excentricidade. Alguns, mais afoitos, rasgam relatos olímpicos sobre a aventura de ter a mais bela variedade da espécie.

E me contagio por um sentimento dinossáurico ou, como me ensina o amigo Frassales, de minha “rabugice de velha”. Assim, em tempos de modernidades e de modos efêmeras, sem raízes fincadas e sem referencias de tempos, memórias, sentidos; isolo-me e encontro abrigo de minha infâncias e na titânica peleja de minha mãe com as formigas de roça que, sobretudo, na calada da noite, insistem em devastar suas folhas, desenhando verdes caminhos na direção dos formigueiros.

Encontro pouso em uma tímida touceira de rosa amélia cultivada no oitão de casa e cujo desabrochar de suas róseas é ansiosamente aguardado para enfeitar o acanhado jarro que  compõe o cenário da pequena mesa de orações, preparada para o novenário do mês mariana. E a delícia de ver o suave despetalar quando a maturidade determina a substituição da beleza pela sequência do tempo.

Consola a anima a singela simpatia que, majestosamente, brota nas primeiras chuvas, enroscando-se e enramando por frestas das cercas de vara cobrindo curvas e dobras de estradas e vidas de minúsculas flores rosa. Simpatia, bonina, lágrima de Santa Luzia, rabo de rato e, até mesmo, a gitirana. Flores nossas ou aqui aportadas em tempos outros. Flores que, jogadas ao ostracismo pela modernidade da flor do deserto, florescem em cantos de jardins, em improvisados jarros de lata de neston ou em beiços de estradas e me atualizam a imagem e o cheiro da rosa mélia aquecida pela pálida e bruxuleante luz da vela fincada num modesto castiçal a iluminar ladainhas, novenas e bênçãos em noite de maio.



fonte: Jornal A União, fevereiro/2021

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