segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

“Carcará” e o destino de uma cidade para não se tornar refém do cangaço

Linaldo Guedes
linaldo.guedes@gmail.com


Fosse lançado na década de 1930, o romance “Carcará” teria sido inserido no primeiro time da literatura regional brasileira. Como se sabe, aquela década revelou nomes como José Américo de Almeida, Rachel de Queiroz, Graciliano Ramos, Jorge Amado e José Lins do Rêgo, para ficar nos mais referenciados. Lançado pela primeira vez em 1984 pela José Olympio Editora, “Carcará”, de Ivan Bichara, narra o assalto do bando de cangaceiros chefiado por Sabino Gomes a Cajazeiras, no ano de 1926.

Praticamente, todas as principais características da segunda fase do Modernismo estão na obra do escritor paraibano. Entre elas, a influência do realismo e romantismo, regionalismo, realidade social, cultural e econômica, valorização da cultura brasileira, temática cotidiana e linguagem coloquial.

Como é sabido, a prosa dessa fase do Modernismo se aproximou da linguagem coloquial e regional, mostrando a realidade de diversos locais do país, ora no campo, ora na cidade.

No caso do livro de Ivan Bichara, essas características estão presentes em diversas passagens do livro. A forma como o autor descreve o cenário urbano e rural do sertão paraibano é de uma impressionante realidade, embora com um toque de prosa poética em alguns momentos. Não tem como não se sentir em pleno sertão paraibano quando Bichara descreve a feira livre ou os pequenos sítios da redondeza.

“Carcará” narra uma realidade que existiu por muito tempo em cidades dos sertões nordestinos. Eram pequenas cidades e comunidades que viviam sempre apavoradas com a iminente invasão de Lampião e seus cangaceiros. No caso de Cajazeiras, Lampião decidiu não invadir a cidade. A lenda é que essa sua decisão atendia a um pedido de Padre Cícero, que teria sido aluno do Padre Rolim e não queria que a terra do seu mestre se tornasse refém dos cangaceiros.

Sabino Gomes era um dos “cabas” de confiança de Lampião e pediu ao “capitão” autorização para invadir Cajazeiras. Na verdade, Sabino havia residido em Cajazeiras e queria se vingar de alguns habitantes da cidade. Toda a narrativa do livro é construída a partir da expectativa existente na cidade para a invasão do bando de Sabino. É a partir dela que Ivan Bichara tece sua teia de ficcionista, criando

personagens fascinantes, como o ex-cangaceiro Raimundo Anastácio, Manoel Santana, Cego Alexandre, Raimundo Casimiro, tenente Elino Fernandes, Mariá, Moisés e Chicão, entre outros, que convivem no romance com personagens reais da história de Cajazeiras e da Paraíba, como Dom Moisés Coelho, Padre Gervásio Coelho, professor Hildebrando Leal, Major Epifânio Sobreira, Hygino Rolim, poeta Cristiano Cartaxo, Otacílio Jurema e o próprio pai de Ivan Bichara, entre outros.

Segundo o poeta e editor Lenilson Oliveira, além da psicologia das personagens, uma das preocupações de Ivan Bichara foi com a sociologia central do tema do romance: o cangaço, movimento que ganhou força nas primeiras décadas do século passado. “Mesmo sem se ater muito à questão, Ivan Bichara tenta situar o leitor, por meio de suas personagens, no que foram aqueles homens e mulheres que optaram pelo cangaceirismo, ‘filhos da seca’”, analisa Lenilson.

“Carcará” é o primeiro romance de Ivan Bichara, que lançou ainda os romances “Tempo de servidão” e “Joana dos Santos” e foi governador da Paraíba nos anos 1970. E, de fato, a questão do cangaço é o mote central do livro, mas a abordagem maior é na construção dos personagens e seus dramas pessoais de vida, enquanto se aguarda a invasão dos cangaceiros. Lembra, e muito, o enredo do célebre filme “Sete homens e um destino”, de John Sturges (1961), que teve um remake de Antoine Fucqua em 2016.

Do gênero western, o filme narra a história de um grupo de mexicanos que moram em uma pequena comunidade e vivem aterrorizados pelo bandido Calveira e sua gangue, que invade o local com frequência para roubar mantimentos. Foi mais ou menos isso que aconteceu na Cajazeiras de 1926. No filme, os habitantes da cidade mexicana foram atrás de pistoleiros profissionais para se protegerem de Calveira. No livro, os habitantes de Cajazeiras foram protegidos por Raimundo Anastácio e tenente Elino Fernandes, além de outros abnegados heróis que expulsaram Sabino Gomes e os cangaceiros. Se o filme narra o destino de sete homens, a belíssima obra de Ivan Bichara conta o destino de uma cidade e como sua gente se uniu para não ser saqueada.

Em tempo: a edição que li de “Carcará” foi organizada pelo professor Francelino Soares, membro da Academia Cajazeirense de Artes e Letras (ACAL), e lançada e, 2019 pela Editora A União, em comemoração ao centenário de nascimento de Ivan Bichara.

Linaldo Guedes é poeta, jornalista e editor. Com 11 livros publicados e textos em mais de trinta obras nos mais diversos gêneros, é membro-fundador da Academia Cajazeirense de Artes e Letras (Acal), mestre em Ciências da Religião e editor na Arribaçã Editora. Reside em Cajazeiras, Alto Sertão da Paraíba, e nasceu em 1968.


fonte: https://www.osguedes.com.br/

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