quarta-feira, 11 de novembro de 2020

NOSSA SENHORA DOS CINÉFILOS ME ACUDA

por: João Batista de Brito


Fui, outro dia, acometido de um delírio que me deixou preocupado com minha saúde mental.

Estava eu em João Pessoa, mas não era a de hoje: entre tarde e noite, era um dia na remota década de cinquenta, e, como o personagem de “Morangos Silvestres”, eu não sabia se, nessa dimensão mágica do passado, estava velho ou se ainda era criança.

Quem me tomou pela mão e me guiou por esse tempo antigo não sei se foi o Virgílio de Dante, ou um dos espíritos de Charles Dickens, ou o anjo Clarence de Frank Capra.

Só sei que, de repente, lá estava eu às portas do Cinema Astória, ali no comecinho da Rua da República, quase vizinho à extinta Fábrica Sanhauá, não muito longe da ponte do mesmo nome, aquela que liga João Pessoa a Bayeux. O filme que estava em cartaz era “Beau Geste”, mas nem comprei ingresso.

Certificado de que eu contemplara a fachada do velho Astória, o meu guia, fosse quem fosse, me fez subir a rua em direção à Praça da Pedra, e lá, dobrou comigo para o lado direito, e seguimos pela São Miguel, até o Cinema São Pedro, que estava exibindo o “Fantasia” de Walt Disney.

Olhamos o cartaz, cubamos o movimento da garotada trocando gibis, e nos mandamos, não em direção ao cemitério - graças a Deus - mas, de volta à Praça da Pedra, de onde continuamos subindo a Rua da República, até o seu final. No encontro desta rua com a General Osório, lá estava o que eu já sabia que ia encontrar - a fachada do Cine Filipéia, onde se destacava o cartaz de “Paixão dos Fortes”, o filme do dia. Pensam que ficamos para a matinê com Henry Fonda? Que nada, o meu guia me arrastou General Osório abaixo, até a Guedes Pereira, em cuja esquina dobramos e fomos ter na calçada do Cine Brasil.

Fiquei louco para ver o filme do dia, “A sombra de uma dúvida”, mas, de novo, o meu guia não permitiu. Demos alguns passos subindo a rua e dobramos à esquerda, agora General Osório acima. Na primeira esquina, o guia nem precisou sinalizar: tomamos a Peregrino de Carvalho e logo estávamos na frente do belo e grandioso Cine Rex que, com algum alarde, exibia naquele dia “Sansão e Dalila”.

Mal deu tempo de me embevecer com, no cartaz, o rosto perfeito de Hedy Lamarr e os peitos estufados de Victor Mature, descemos a Rua Duque de Caxias, viramos à esquerda no Ponto de Cem Réis, e eis-nos diante do não menos grandioso Cine Plaza, onde uma fila enorme se estendia até a calçada do vizinho Pronto Socorro, esperando para ver nada menos que “Os homens preferem as louras”. Com certa impaciência perante o meu demorado deslumbramento com a pose sensual de Marilyn Monroe, o meu guia me puxou pelo braço e seguimos pela Praça 1817.

Cruzamos em diagonal a Praça João Pessoa, tomamos a Rua das Trincheiras e fizemos uma longa caminhada, até encontrarmos a rua Capitão José Pessoa, já no bairro de Jaguaribe; aí dobramos e fomos ter com o Cine Jaguaribe, que entre um seriado e outro, exibia “As minas do rei Salomão”, Deborah Kerr e Stuart Granger no cartaz.

Daí seguimos a Capitão José Pessoa e na próxima esquina, à esquerda, Rua Floriano Peixoto, dobramos e nos dirigimos - precisa dizer? - ao Cine São José, onde o filme do dia era “O manto sagrado”. Tratava-se, como se sabe, do primeiro cinemascope e muita gente esperava para ver a novidade.

Mas nós, não. Retornamos pela mesma Floriano Peixoto, e, sempre em linha reta, cruzamos várias esquinas do bairro de Jaguaribe, até chegar à Av. Primeiro de Maio, onde tomamos a direita e, ladeando o muro alto do imenso e imponente Clube Cabo Branco, atravessamos o calçamento da Vasco da Gama, e nos detivemos no pátio frontal do Cine Teatro Sto Antônio. Tive ânsias de me livrar do meu guia e entrar para ver Gene Kelly e Debbie ReynoldsCantando na chuva”, mas não foi possível. Pela resistência que ofereceu, estava visível em seu rosto impaciente que ainda havia outros cinemas a visitar. Sim, eu sabia que havia pelo menos mais quatro, o Glória e o Bela Vista, em Cruz das Armas, e o Cine Torre e Metrópole, na Torre.

Por que ver tantos cinemas sem entrar para o que interessava? Devo ter me oposto com certa veemência ao incompreensível propósito do guia, e, por certo, foi essa oposição que desfez o meu delírio.

Voltei a mim, nostálgico, me dando conta de que, havia décadas e décadas, nenhum desses cinemas existia mais. Nostálgico e um pouco perplexo, sem ter decifrado a mensagem do meu vago e misterioso guia.

Nos seus delírios, o poeta Dante, o velho Scrooge sovina de Dickens, e George Bailey, o honesto pai de família de Capra, entenderam os seus respectivos guias e lucraram com isso: eu não.

Até agora aguardo que alguma Nossa Senhora dos Cinéfilos me acuda e revele o sentido do meu estranho delírio.

(Em tempo: Esta crônica vai para os amigos João Luiz Vieira e André Dib)



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