Fui, outro dia, acometido de um delírio que me deixou preocupado com minha saúde mental.
Estava eu
em João Pessoa, mas não era a de hoje: entre tarde e noite, era um dia na
remota década de cinquenta, e, como o personagem de “Morangos Silvestres”, eu
não sabia se, nessa dimensão mágica do passado, estava velho ou se ainda era
criança.
Quem me
tomou pela mão e me guiou por esse tempo antigo não sei se foi o Virgílio de
Dante, ou um dos espíritos de Charles Dickens, ou o anjo Clarence de Frank
Capra.
Só sei
que, de repente, lá estava eu às portas do Cinema Astória, ali no comecinho da
Rua da República, quase vizinho à extinta Fábrica Sanhauá, não muito longe da
ponte do mesmo nome, aquela que liga João Pessoa a Bayeux. O filme que estava
em cartaz era “Beau Geste”, mas nem comprei ingresso.
Certificado
de que eu contemplara a fachada do velho Astória, o meu guia, fosse quem fosse,
me fez subir a rua em direção à Praça da Pedra, e lá, dobrou comigo para o lado
direito, e seguimos pela São Miguel, até o Cinema São Pedro, que estava
exibindo o “Fantasia” de Walt Disney.
Olhamos o
cartaz, cubamos o movimento da garotada trocando gibis, e nos mandamos, não em
direção ao cemitério - graças a Deus - mas, de volta à Praça da Pedra, de onde
continuamos subindo a Rua da República, até o seu final. No encontro desta rua
com a General Osório, lá estava o que eu já sabia que ia encontrar - a fachada
do Cine Filipéia, onde se destacava o cartaz de “Paixão dos Fortes”, o filme do
dia. Pensam que ficamos para a matinê com Henry Fonda? Que nada, o meu guia me
arrastou General Osório abaixo, até a Guedes Pereira, em cuja esquina dobramos
e fomos ter na calçada do Cine Brasil.
Fiquei
louco para ver o filme do dia, “A sombra de uma dúvida”, mas, de novo, o meu
guia não permitiu. Demos alguns passos subindo a rua e dobramos à esquerda,
agora General Osório acima. Na primeira esquina, o guia nem precisou sinalizar:
tomamos a Peregrino de Carvalho e logo estávamos na frente do belo e grandioso
Cine Rex que, com algum alarde, exibia naquele dia “Sansão e Dalila”.
Mal deu
tempo de me embevecer com, no cartaz, o rosto perfeito de Hedy Lamarr e os
peitos estufados de Victor Mature, descemos a Rua Duque de Caxias, viramos à
esquerda no Ponto de Cem Réis, e eis-nos diante do não menos grandioso Cine
Plaza, onde uma fila enorme se estendia até a calçada do vizinho Pronto
Socorro, esperando para ver nada menos que “Os homens preferem as louras”. Com
certa impaciência perante o meu demorado deslumbramento com a pose sensual de
Marilyn Monroe, o meu guia me puxou pelo braço e seguimos pela Praça 1817.
Cruzamos
em diagonal a Praça João Pessoa, tomamos a Rua das Trincheiras e fizemos uma
longa caminhada, até encontrarmos a rua Capitão José Pessoa, já no bairro de
Jaguaribe; aí dobramos e fomos ter com o Cine Jaguaribe, que entre um seriado e
outro, exibia “As minas do rei Salomão”, Deborah Kerr e Stuart Granger no
cartaz.
Daí
seguimos a Capitão José Pessoa e na próxima esquina, à esquerda, Rua Floriano
Peixoto, dobramos e nos dirigimos - precisa dizer? - ao Cine São José, onde o
filme do dia era “O manto sagrado”. Tratava-se, como se sabe, do primeiro
cinemascope e muita gente esperava para ver a novidade.
Mas nós,
não. Retornamos pela mesma Floriano Peixoto, e, sempre em linha reta, cruzamos
várias esquinas do bairro de Jaguaribe, até chegar à Av. Primeiro de Maio, onde
tomamos a direita e, ladeando o muro alto do imenso e imponente Clube Cabo
Branco, atravessamos o calçamento da Vasco da Gama, e nos detivemos no pátio
frontal do Cine Teatro Sto Antônio. Tive ânsias de me livrar do meu guia e
entrar para ver Gene Kelly e Debbie Reynolds “Cantando na chuva”, mas não foi
possível. Pela resistência que ofereceu, estava visível em seu rosto impaciente
que ainda havia outros cinemas a visitar. Sim, eu sabia que havia pelo menos
mais quatro, o Glória e o Bela Vista, em Cruz das Armas, e o Cine Torre e
Metrópole, na Torre.
Por que
ver tantos cinemas sem entrar para o que interessava? Devo ter me oposto com
certa veemência ao incompreensível propósito do guia, e, por certo, foi essa
oposição que desfez o meu delírio.
Voltei a
mim, nostálgico, me dando conta de que, havia décadas e décadas, nenhum desses
cinemas existia mais. Nostálgico e um pouco perplexo, sem ter decifrado a
mensagem do meu vago e misterioso guia.
Nos seus
delírios, o poeta Dante, o velho Scrooge sovina de Dickens, e George Bailey, o
honesto pai de família de Capra, entenderam os seus respectivos guias e
lucraram com isso: eu não.
Até agora
aguardo que alguma Nossa Senhora dos Cinéfilos me acuda e revele o sentido do
meu estranho delírio.
(Em
tempo: Esta crônica vai para os amigos João Luiz Vieira e André Dib)
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