Escritor e critico de cinema e literatura
Noites de Cabíria: Foto Giulietta Masina |
Tenho contado histórias minhas, mas acho sadio abrir a porta para os outros. Esta quem me contou foi um amigo bem mais velho que eu, aliás, já falecido, Ademar, que foi, no Jaguaribe dos anos cinquenta, um dos boêmios mais conhecidos e divertidos do bairro.
Naquela época eu era criança, mas, através de meus irmãos mais velhos, gostava de acompanhar – de longe, claro – as notícias das aventuras dessa rapaziada animada que, entre um trabalhinho e outro, vivia de cerveja, serenatas e outras peripécias. Amigo de meus irmãos, Ademar fez parte dessa turma que, com o passar dos anos, perdi de vista. Ele, inclusive.
Muito adiante, já nos anos oitenta,
num evento da API, eis que me deparo com Ademar, agora enrugado e grisalho. Eu,
que dele não tinha notícias havia tanto tempo e que nunca o associei a nada que
tivesse a ver com o âmbito cultural da cidade, fiquei surpreso em saber que me
lia na imprensa. Contou-me também a emoção que sentiu ao descobrir que aquele
crítico de cinema que mantinha coluna semanal em O Norte, e que ele tanto
admirava, era o garotinho de Jaguaribe que vendia pão.
Após o evento, descemos para a orla e
fomos ao restaurante Gambrinus festejar o reencontro, e foi então que ele me
contou a história.
Ocorreu, segundo ele, num sábado
qualquer de 1958. Ele e uns amigos marcaram de se encontrar no Ponto de Cem
Réis para um programa improvisado. Bateram uns papos por ali, e logo que o sol
se pôs, pensaram num cineminha. Depois só Deus sabia o que poderia vir
provavelmente umas cervejas na Maciel Pinheiro.
Como os cartazes do Plaza e Rex não
prometessem, desceram para o Brasil, aliás, cinema mais barato. O filme do dia
era italiano, e não acharam isso muito animador, mas entraram assim mesmo.
Era sobre a vida de uma pobre
prostituta e, de fato, no começo pareceu chato, sem graça, ganhando resmungos e
vaias da plateia, quase toda composta de homens. Um dos amigos até sugeriu que
saíssem.
Pois, na medida em que o filme foi
rolando, o personagem da infeliz prostituta, com seu heroísmo miúdo e sua
bravata ingênua, foi ganhando vulto e sentido para ele.
Contou-me Ademar que, da metade do
filme em diante, embora seus amigos continuassem indiferentes e aborrecidos,
ele já estava completamente tomado por Cabíria. De tal modo que, no desenlace,
quando a pobre mulher sofre aquele golpe fatal, junto ao precipício escuro, ele
quase não conteve as lágrimas. Ela arrastando-se no matagal feito um bicho
ferido, implorando ao seu algoz pelo golpe de misericórdia (“mata-me, mata-me,
mata-me”) e Ademar sufocado, quase sem fôlego. No final, quando Cabíria,
rodeada pelos jovens que cantam e dançam na estrada, deixa transparecer aquele
sorriso teimoso, feito de pura dor, ele, Ademar, correu para o banheiro, e,
escondido de todos, simplesmente chorou. Baixinho, mas chorou.
Os amigos deram graças a Deus que
“aquela merda” acabara, e ele, envergonhado, escondeu sua reação ao filme o
quanto pôde.
Do cinema, desceram para a Maciel
Pinheiro e, no Cabaré de Hosana, encheram a cara como faziam de costume. Já
tarde da noite, deveriam escolher, cada um em sua vez, uma “menina” e se
dirigir ao quarto que estivesse vago, poucos numa noite concorrida como aquela.
Ao chegar sua vez, Ademar, sem muita
convicção, puxou pela mão umas das “meninas” disponíveis, mas, no quarto, a sós
com ela, não sentiu nada. Olhava para aquela mocinha pobre, com certeza
maltratada pela vida, e, não tinha jeito: via Cabíria. Deitaram-se e
conversaram por algum tempo, ele perguntando e confirmando sua impressão de
pobreza e sofrimento. Faxineira de profissão, a moça morava numa tapera nos
arrabaldes, era mãe solteira de uma criança doente de um mal congênito grave,
cujo tratamento médico ela pagava com os fins de semana em Hosana.
Ao sair, sem nada haver ocorrido
entre os dois, ele beijou-a na testa e pagou o tempo que ela perdera com ele.
Achei sublime quando, naquela mesa do
Gambrinus, Ademar findou seu relato confessando que, naquela noite num quarto
sujo do Cabaré de Hosana, com todo vigor de seus vinte e um anos de idade,
sentiu-se orgulhoso de haver brochado.
Ao nos despedirmos, não resisti:
abracei-o e lhe beijei o rosto. Foi a última vez que vi Ademar. Foi, mas toda
vez que revejo “Noites de Cabíria” (Fellini, 1957) me lembro dele... E também
choro.
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