terça-feira, 9 de junho de 2020

A Mudança do Quíntuplo

Cleudimar Ferreira
cleudimar.f.l@gmail.com 



Passava provocando o futuro, atropelando sonhos e causando incertezas os dias secos de 1970. Destruindo qualquer possibilidade remota de se ver florescer, aquelas cores benditas do pau-d’arco ainda vivo, no prado morto de todos. Parecia que o destino não fazia mais parte do tempo, nem tampouco o tempo na rotina de Antonino. O que restava a ele, não era claro. Sentava lá no peituri de suas incertezas e olhava aquele panorama abstrato, confuso a sua frente. Na incógnita inquietante e vazia, molhava seus olhos de tristeza de não saber o que fazer. Porém mesmo galopando dúvidas, tinha uma razão de está ali, pois ainda acreditava nas mudanças do tempo. Sim, era preciso que isso acontecesse. Para tanto, era necessário agir, remexer. Fazer com urgência seu mundo girar, por mais parado que estivesse. Continuar assim, do jeito que aparentava ver, era caminhar em direção a um abismo total. Mas sabia ele que, abandonar tudo que havia sido conquistado às duras penas, era dolorido, porém necessário, pois não conseguia segurar os desesperos dos que e ele procuravam a caridade, o socorro imediato. Assim era a mesmice do seu tempo, assim era a rotina sombria das horas infindáveis.

A pequena bodega que tanta deva prazer e que matinha sortida em épocas de farturas, dava sinais de enfraquecimento e seu estoque, minguava. Despencava a cada semana, desaparecia sem perspectiva de volta. Como sempre ele dizia: “era uma calamidade.” Adonias, seu parceiro nas atividades de vendagens de bebidas, nas áureas noites de forrós que costumeiramente aconteciam nas adjacentes do Sitio Riacho do Bálsamo, mesmo estando perturbado com aquela situação do tempo, que atingia a todos e a ele também, apareceu desconfiado, palitando e chupando os dentes com uma proposta inusitada, tentadora, propondo firmar um consórcio comercial no ramo de mercearia, com vendas no varejo de estivas e cereais na cidade de Cajazeiras.  

Diante das muitas dificuldades que os dias lhes presenteavam, não estava nos planos de Antonino, firmar naquele instante qualquer negócio, quanto mais uma sociedade. Entretanto, depois de tantas luas perdidas, queimando a cabeça e o juízo de tanto pensar naquela inesperada proposta, bem como, mas constantes insistências de Adonias, velho amigo, parceiro de tantas noites saturadas, aturando bêbados e beiradeiros fanfarrões nos forrós da sua zonal rural, Antonino acabou aceitando aquela provocação comercial. Como não era homem de fugir de desafios, sempre se apegava a essa tese quando a precisão se fazia presente, achou que aquela vontade de Adonias seria a alavanca que a vida podia lhe dar naqueles compridos dias cinzentos.

Fizeram o combinado básico de se encontrar na cidade e lá, procurar apoio a Zé Capitão - o bom homem de negócios. Pessoa horado que estava sempre disposta a ajudar e ensinar aqueles que nas horas difíceis, decidia entrar no ramo de estivas e cereais. Com ajuda de Zé Capitão, montaram o negócio na Rua Temente Otacílio Fernandes. No inicio, em meio às batidas dos ferros e as fumaças dos foles de forja, tudo não passava de expectativa e planos de passagem para um futuro promissor. Mas os importunos da vida precisavam ser encarados e se eles aparecerem necessitava está preparado para o confronto. E ele apareceu na falta de ânimo de Adonias, para surpresas dos amigos mais chegados. E antes de completar um ano, a sociedade foi desfeita.

Mesmo sem ter mais a presença do seu escudeiro comercial, Antonino continuou tocando a mercearia com muito sacrifício, pois tinha que deixar a mulher e três filhos menores no sítio onde morava, administrar o que ainda restava do patrimônio para cuidar: a mercearia; uma casa; a pequena bodega rural e o baixio com três pés de laranjas, dois pés de manga jasmim e a cerca de arame que marcava a terra arrendada do seu primo segundo Zuca Moreira. Quando parava para pensar em tanto trabalho, não sabia discernir de onde vinha tanto jogo de cinturar para lidar com tudo. Mas não havia outro jeito diferente de viver, era esse o propósito que a vida lhe deu.

Com apenas um braço masculino na prole com capacidade de cuidar das tarefas da roça, Antonino seguiu cumprindo a rotina. A bodega no sitio já não dava mais lucro. Há muito tempo tinha se transformado em uma espécie de posto público de apoio a muitas famílias que sofrendo com a estiagem, passando por necessidades por causa da eminente seca, comprava fiado e não pagava e, nem ele mais cobrava, pois quase ninguém ali, naquela localidade tinha onde trabalhar, ganhar dinheiro e pagar o que devia. E assim, a “palo seco” que cobria a terra, se estendia agonizante e cada vez mais rasteira. Nessa contenda o tempo nefasto corria em direção contrária aos que todos naquele lugar queriam que ela andasse. E por ser assim, promovia o engrossamento da situação, trazendo sofrimentos para muitos, fome e desespero. Favorecendo o surgimento de distúrbios sociais, promovendo instabilidades, ataques e saques no comércio das cidades circunvizinhas a Cajazeiras.

O distanciamento provocado por passar semanas em Cajazeiras, tocando as vendas na mercearia da Rua Temente Otacílio Fernandes, fazia Antonino ficar ausente da educação dos filhos; da responsabilidade de zelar o baixio e da encolhida bodega. Tudo era cuidado com sacrifício, durante os dias que ele passava na cidade, pela esposa que ainda achava tempo para tratar também dos afazeres domésticos. Cansava a mulher e os filhos; penava Antonino por se sentir impotente diante de tanto trabalho a cumprir. Pensando no que viria mais a frente, com o agravamento das tensões sociais, ele resolveu desfazer da mercearia na cidade, fruto da sociedade com Adonias, vendendo parte do estoque e a outra parte, a mais essencial para consumo de casa, trouxe para recompor o pequeno estoque da bodega no sítio. Era o recomeço e a volta a estaca zero.

Agora mais aliviado e reintegrado a família, ele não pensava mais no futuro, pois o futuro parecia algo visionário que a cada dia corria como o tempo a contragosto, distanciando dos seus pensamentos, sem possibilidades de alcance. Com essa condição, o certo mesmo e se entregar aos infortúnios traçados para todos no desarrumado ano 70. Era uma oscilação que o levava para uma decisão. Se para mais ou para menos, puxava seu destino e o da sua família em direção a uma fronteira, a de recuo ou a do avanço para a libertação do joio que o prendia naquela terra, que tantas alegrias havia dado a ele, a esposa o três filhos pré-adolescentes, que pouco ou quase nada conhecia da vida ou sabia sobre ela e o futuro. Os dias passavam e a mesmice continuava provocante, ameaçadora, tirando a paciência de muitos chefes de família naquele lugarzinho desprezado pelo poder público. Esquecido e retirado das possibilidades de acesso às benesses do município de Cajazeiras, que todos ali, de direito, tinha da edilidade municipal.

Cansado da toda carga de problemas que o rodeava, certa vez numa manhã, Antonino acordou abriu a minguada bodega que simbolizava o fruto de tanto trabalho por nada, olhou o que restava nas prateleiras, e uma tristeza misturada com revolta, abateu o seu sentimento de tanta luta. Fechou a porta de baixo daquele pequeno comércio e se deslocou até a cozinha onde a mulher preparava o café matinal. Chegando, pediu atenção da esposa e falou: “olha, você vai ficar aqui, tomando conta de tudo, olhando tudo, que eu vou à Cajazeiras”. A mulher curiosa pergunta: “o que vai fazer lá numa segunda-feira como essa?” Ele respondeu: “Vou ver se boto uns caixões na feira pra ver se ganho dinheiro, pois a coisa está feia e eu não estou aguentando mais”. E ele foi... Pegou o “Misto de seu Zé Anjo” que vinha de Sousa e seguiu até o seu destino. Chegando lá, mais uma vez procurou o amigo Zé Capitão e pediu ajuda. Zé Capitão solidário com a sua situação, lembrou a ele que conhecia um feirante que estava vendendo uns caixões e indicou o endereço onde o tal feirante costuma estar. Sem perder muito tempo, Antonino foi até o citado endereço, a procura do dito feirante. Ao chegar ao ponto indicado onde o desconhecido estava se apresentou e perguntou se ele estava vendendo uns caixões e que ele estava ali a mando de Zé Capitão para comprar. Sendo confirmado pelo mesmo, que realmente esse queria desfazer dos objetos, Antonino sabendo mais ou menos o valor dos objetos, negociou com o indicado feirante e terminou comprando os seus quatros caixões de cereais.

Consolidado o negócio, levou os caixões até a mercearia de Zé Capitão e perguntou ou comerciante se poderia guardar os mesmos, juntamente com os cereais, no interior do seu comércio até o próximo sábado, dia da feira. Zé Capitão olhou nos olhos de Antonino e viu que o desespero acentuava seus olhos e tomava repentinamente conta de suas feições, e disse: “claro, Antonino, pode guardar ali dentro, junto com os outros de outros feirantes que já tem lá”. Contento pelo feito que havia conquistado, agradeceu a Zé Capitão pela ajuda que recebera pela segundo vez, deu um bom dia e voltou para casa. Chegando à sua residência ao meio dia, contou à mulher que havia feito um negócio na cidade e que ela se preparasse, pois aos sábados ia ficar ausente o dia todo e ela iria assumir os afazeres de casa com os meninos até a sua chegada ás cinco horas da tarde.

Sem fazer nenhuma oposição à atitude tomada pelo marido, a mulher aceitou calada aquela sua mais nova responsabilidade, pois entendia que o esforço feito pelo seu companheiro era sacrificado e objetivava a melhoria das condições de vida de todos, principalmente dos filhos. Agora com nova atividade comercial, a de feirante de legumes, ele pensava que sua vida iria tomar outro rumo e começou a fazer planos. Guardava sonhos de noites mal dormidas e fixava na linha do tempo só pensamentos positivos e metas a serem compridas. Tocado por esse automatismo psíquico, ele aturou vários meses num vai-e-vem sempre aos sábados, entre o Sitio e a cidade de Cajazeiras, acreditando que em breve espaço de tempo arranjaria meios de fazer mudanças profundas na vida.

Dividido entre os afazeres da terra, a bodega e os caixões, Antonino trabalhou infindáveis meses ao sol abrasador do descontrolado ano 70, até que num certo dia de feira, um freguês apareceu diante dele para comprar alguns quilos de legumes, aproveitou e lhe perguntou se ele não tinha interesse em comprar uma casinha. E foi logo afirmando que estava vendendo por motivos de não ter se adaptado a rua e que voltaria, tão logo vendesse, para sua terrinha no Sítio Poços. Havia nos dias sombrios daquele ano, uma reflexão que sempre insistia em martelar os pensamentos de Antonino. Porque não vir de vez morar em Cajazeiras e assim, acabar as tantas dificuldades passadas, cuidando de uma terra que não era sua e que pouca coisa lhe dava de retorno! Olhou para o freguês ali esperando sua resposta, e um inesperado impulso que lhe abateu naquele instante, acabou falando para aquele senhor que esperava sua resposta: É... Eu tô interessado! Faço o seguinte, quando a feira terminar no finalzinho da tarde, o senhor volte aqui e a gente vai olhar a casa, se eu gostar, a gente pode até fazer negócios. Feito o combinado, o dia seguiu seu curso e quando o relógio marcou às quatro horas, o vendedor da casa chegou. Com os caixões já guardados na mercearia de Zé Capitão, Antonino seguiu com o desconhecido senhor em direção à zona sul da cidade. Chegando à rua onde o imóvel ficava o vendedor abriu a casa.

Era uma casa pequena, um pouco estreita, conjugada, porém bem dividida, o bastante para atrair a atenção de Antonino. Perguntou ao vendedor quanto era a casa, e depois da resposta daquele homem, acabou fazendo o negócio e selando a compra da casa. Às cinco horas, com as chaves na mão, chegou a sua residência depois de mais um dia trabalho suado e cansativo. Minutos depois, depois de ter tomado banho e jantado, Antonino, chamou a esposa e falou sobre a compra da casa e avisou que logo na segunda-feira, voltaria a Cajazeiras, juntamente com seu cunhado Dorgival, para fazer alguns serviços de reboco, acabamento e pintura. O necessário que o imóvel estava precisando para ficar pronto para morar ou alugar. A mulher encabulada com aquela surpresa alegre que o marido acabara da anunciar naquele momento, logo imaginou mil coisas na cabeça e entre uma delas, a de ir morar na cidade. Como quem estivesse lendo o pensamento da esposa, Antonino ponderou e disse a mulher que ia alugar a casa, e ia usar o dinheiro para aumentar a renda da família, e que esse era os seus planos para aquele momento.

A vida seguiu seu rumo na monotonia do tempo. Quanto mais se aproximava o final do ano, mais tormentos a população passava. A água de beber já não era encontrada com facilidade no leito do Riacho do Balsamo. Gado morria a míngua nos olhos de muitos criadores sem nada se poder fazer. As dificuldades se alastravam por toda parte, principalmente nos Sítios Bé e Serraria. A fome e o desespero passaram a ser o retrato amarelo nas paredes de muitas casas em todo região. Via-se o sentimento de revolta e descrença nas promessas das autoridades do município de Cajazeiras, que num inercia profunda, não conseguia ajuda para população faminta do campo. Era essa à imagem fiel estampada na face magrela de todos. Antonino e sua família como parte desse contexto sofria sem poder fazer nada para ajudar os que procuravam a sua bodega, pedindo de tudo, querendo comprar fiado. Mas ele tocava essa realidade da forma como podia. Da maneira como foi previamente determinada para sua missão naquele lugar onde nasceu, viveu sua adolescência e juventude. Se a bodega há muito tempo já não dava mais lucro, a outra atividade comercial que tinha na feira de Cajazeiras, acompanhando o agravamento do seco ano 70, passou dar os primeiros sinais de enfraquecimento.

Esses sinais passaram a ser visíveis no seu rosto escavacado; no seu corpo magro esquelético de pele amorenada do queimar do sol. Cansado daquela luta em vão, ele num dia de sábado do mês dezembro, há uma semana antes do natal, procurou o agropecuarista Nassau Coralino, que levava e trazia todos os sábados, os agricultores dos Sítios Almas e Rôdo para a feira livre de Cajazeiras. Combinou com ele para que no finalzinho da tarde fosse até sua casa pegar seus troços, pois estaria definitivamente se mudando com a família para Cajazeiras. Feito o trato com Nassau, ele voltou naquele dia mais sedo para casa na Caminhonete de Zé Duda. Quando chegou, chegou sem a feira da semana que sempre fazia na cidade e trazia para o consumo da semana. A mulher desconfiada com a atitude do esposo, começou a fazer perguntas e mais perguntas. Queria saber onda estava a feira e, como eles iam passar a semana sem a carne e outros gêneros alimentício que família consumia, que geralmente não se encontrava para comprar naquele Sítio. Para acalmar a esposa, Antonino respondeu que havia deixado à feira na mercearia de Salir, e que na segunda-feira, iria a Cajazeiras pegar e trazer para casa. Mas outra coisa cativava a curiosidade da esposa. Por que Antonino tinha retirado toda mercadoria que ainda havia nas prateleiras da pequena bodega e colocada dentro de caixas.

Algo estranho ela viu no esposo, pois Antonino sempre desconversava perguntando a esposa por que tanta curiosidade e preocupação com o que ele estava fazendo naquela tarde. A tarde foi passando e quando chegou às cinco horas, um ronco ecoou distante e uma nuvem de poeira subiu da estada e continuo formando uma linha sinuosa de fumaça cobrindo todo trajeto. Um cenário imprevisível que cada vez mais se aproximava do local onde morava Antonino e família. Era um caminhão que vinha vindo... E veio a até o terreiro da casa, estacionando quase colado no peituri. Os curiosos das casas vizinhas saíram correndo até o caminhão de Nassau e, muitos perguntavam ao mesmo, o que estava acontecendo para ele está passeando àquela hora, naquela localidade. Aí ele respondeu: vim pegar a mudança de Antonino. Nesse instante Antonino foi até a cozinha onde a mulher e os três filhos jatavam e disse para a mulher: Mulher chegou a hora! Arruma tudo, vamos fazer a mudança, e vamos simbora para Cajazeiras. E com ajuda dos amigos vizinhos, que tantas dificuldades e alegrias viveram, os “cacarecos” que havia na casa foram colocados encima do caminhão. As mulheres, comadres e amigas da esposa, ajudaram arrumar os três meninos. Quando estava tudo pronto, Antonino, mulher e os filhos - duas meninas e um menino, começaram a se despedir em meio às emoções, lágrimas e choros daquela gente amiga que conviveram durante longos tempos de farturas e dificuldades. Subiram no velho Caminhão “FNM” e partiram em direção a cidade, seguindo os suspiros raios do sol poente que ainda restava daquela tarde. E foram cortando a terra seca da estrada e antecipando o natal daquele ano, rumo à Cajazeiras para nunca mais voltar.

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2 comentários:

Unknown disse...

Parabéns Cleudimar. A minha alma sertaneja se reconhece em seu texto ponteado de poesia e beleza.

Francisco Cleudimar F. de Lira disse...

Obrigado.
Nós sertanejos nordestinos, não esquecemos, jamais nossas raízes e nossas histórias.