terça-feira, 24 de março de 2020

UM CONTO DE INVERNO

Cleudimar Ferreira
cleudimar.f.l@gmail.com




O ronco bem distante das boquiabertas nuvens do espelho céu turvo que se precipitava na matinal manhã daquele dia, nos alegrava e dava força para descer a colina. Meu pai contente com aquele "climão" pegou a roçadeira e os dois sacos de estopas, passou por mim, olhou e disse: - vamos? Engoli bruscamente o resto do café da caneca de ágata, agarrei a gaiola com o alçapão e o Galo de Campina, e respondi: - vamos! Saímos na descida híbrida que formatava nosso caminho em direção ao baixio. Ainda era sedo demais para aquela aventura, pois já estava passava das cinco horas daquela manhã e o sol nem sinal de vida dava, face ao “cortinário” chuvoso que encobria a terra naquele momento.

Seguimos sob a orientação daquele traçado molhado em direção à roça. A cerração nos contemplava com um belo cenário, porém difuso e até confuso para mim, se comparado com os dias normais que eu costumava ver. Mas mesmo com a visão embaraçada, íamos, caminhávamos em busca do que naquele plantio havia para nos ofertar.

Quando chegamos, meu pai entrou no escuro verde do milharal, quebrando todas as espigas que podia quebrar. Era fartura pura! Aproveitei aquele momento de vislumbre do meu "papai" e desaparecei de capoeira adentro com minha gaiola na mão. Não precisei andar tanto. Procurei o melhor local para armar o alçapão, pois a oferta de pássaros naquele lugar, principalmente de Galo de Campina, era muita nos meus olhos de garoto de nove anos.

Ao voltar aquele roçado, abri com mais atenção os ouvidos para os pesados barulhos dos trovões que vinha por trás da serra de Boqueirão, e me embrenhei dentro do plantio de milho, buscando o encontro com o meu pai. Após minutos de procura, o avistei mais abaixo da roça, a beira de um pequeno riacho que corria água dormida, cristalina, gelada da noite passada de chuva fria torrencial. Quando cheguei, ele arregalou os olhos e foi logo perguntando onde eu estava e o que eu andava fazendo dentro do capoeiral. Respondi que tinha ido armar o alçapão para pegar pássaros.

Deixamos a beira daquele córrego em direção à parte mais alta da roça. Era nessa região do milharal que ficava as plantações de melancia, pepino e maxixe. Quando chegamos, estava a nossa espera o que de mais maravilhado aquela terra podia nos dar. Fique a contemplar com admiração àquela exposição de frutos fresquinhos revestidos com os pingos do orvalho transparente da manhã.

No plantio de melancia, meu pai começou a percorreu as ramas dessa fruteira, batendo e escutando o tom que cada melancia apresentava na procura de uma melhor e mais suculenta, a mais madura que ele poderia encontrar naquelas ramalheiras. Com tanta experiência que o mesmo tinha no manejo dessa cultura, não passou muito tempo e ele arrancou uma da touceira, e disse: - essa tá boa! Em seguida puxou a faca de sete polegadas da bainha e passou na melancia. Quando dividiu em duas primeiras bandas, se revelou a intensa cor avermelhada da fruta.  

E assim ele saiu fatiando... Fatiando, até cortar em tamanhos ideais para ser comida. Quando terminou de fracionar o fruto, me deu a primeira fatia “friinha”, docinha de sabor sem igual. As lembranças desse tempo pararam em mim por definitivo. Fez morada nos meus dias lentos, sem pressa para um possível esquecimento de tantos invernos bonitos e maravilhosos que vivi e que agora folheados de detalhes pelo tempo, ainda me faz recordar.


2 comentários:

Francisco Rolim Sobrinho disse...

Relato muito objetivo de quem viveu no sertão, de família humilde, que tinha no inverno a única certeza de boa colheita!
Só quem vive no sertão sabe dá o verdadeiro valor às coisas de lá.
Com riqueza de detalhes, você traçou com propriedade todos os fatos de um dia no roçado à colher os frutos do trabalho do homem do campo!
Parabéns Cleudimar!

Francisco Cleudimar F. de Lira disse...

Obrigado amigo "Dotô". As coisas boas que vivemos nunca esquecemos, pois elas ficam para sempre e é para sempre.