sexta-feira, 23 de agosto de 2019

PACARRETE





CRÍTICA
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Robledo Milani



Ela varre a calçada como se cuidasse de todo o mundo. A pedra, as flores, a porta, a casa: aquele é o seu domínio. Abraçada na vassoura, dança como se estivesse no teatro municipal. É dona da própria arte, e dela não irá desistir. Mesmo que todos ao seu redor estejam contra si: os vizinhos que não lhe dão crédito, os conhecidos que a tratam como uma alienígena, o governo que não reconhece seu valor. Até sob seu teto é vista com desconfiança, seja pela irmã, que só lhe dá crédito por dela precisar, ou a empregada, que parece pensar que ‘melhor o maluco que está por perto e sob controle do que aquele longe que pode lhe dar dores de cabeça ainda maiores’. Mas quando nada mais parece fazer sentido, será dentro de si o único lugar onde poderá se refugiar em busca de algo perdido no tempo e no espaço. Ela é Pacarrete, e ninguém poderá acabar com seus sonhos. Pois o tamanho deles, apenas ela é quem determina.

“Aprendi a ouvir, pois percebi que nada tinha a dizer”. Este é o pensamento que toma conta do pequeno povoado de Russas, no interior do Ceará, mas que poderia estar perdido por qualquer canto deste vasto Brasil. A festa de aniversário do município se aproxima, e Pacarrete está decidida a se apresentar nas comemorações. Mandou fazer o melhor vestido, desenhado de próprio punho, e treina sem parar. Não irá medir esforços, tamanha é sua expectativa para esse grande dia. No entanto, a Secretária de Cultura não consegue vislumbrar como encaixar um número de balé no meio de um show de forró. O povo quer beber e se divertir. Quer esquecer das tristezas e celebrar sem pensar no amanhã. Pacarrete, por sua vez, quer recuperar a lucidez, encara com seriedade o seu talento, e vê como única forma de reencontrar os dias felizes que viveu olhando para o ontem. Afinal, foi lá onde ficou sua alegria.

“E eu sou lá mulher de contar misérias?”.  Assim, não dá ouvidos a ninguém que tenta demovê-la de tal ideia. A costureira que vê dificuldade no figurino pela outra imaginado, a burocrata que prefere se esconder e inventar desculpas a ter que lidar com a ansiedade da artista, os meninos que a tratam como louca ao incomodá-la com a campainha. Somente Miguel, dono do bar, lhe oferece um pouco de carinho. O flerte entre eles pende mais para um lado do que outro, mas não deixa de ser real. Pacarrete fica com inveja dos olhares dele e se derrete com sua proximidade. Ele, por sua vez, lhe oferece o afeto que ela tanto necessita, movido mais por compaixão do que por um ímpeto sexual. Percebe as excentricidades da vizinha, e por ela sente um entendimento elevado, misto de pena com empatia. Concede um agrado calculado, seja numa atenção especial, numa palavra de encorajamento, num cuidado singelo. É uma relação de puro afeto. E para quem nada tem, o pouco que recebe faz toda a diferença.

“Grito tanto que ninguém me escuta”. Pacarrete não fala: projeta a própria voz sempre um tom acima. Ela não aparece, se manifesta. Não pede, ordena. O jeito particular de agir é na medida exata para criar um tipo como nenhum outro. Paccarrete é a nova Macabéa, uma Laurita envelhecida, a Querência que um dia ganhou a cidade. Marcélia Cartaxo, no papel da protagonista, mergulha de corpo e alma na pele de uma mulher sofrida, que deixou quem um dia foi para trás quando a família precisou, e agora se agarra com todas as forças na única oportunidade que vislumbra de reviver, nem que por apenas alguns instantes, a glória que já desfrutou. Uma das mais premiadas atrizes brasileiras, condecorada no Festival de Berlim logo em sua estreia, com A Hora da Estrela (1985), vencedora de quatro Candangos no Festival de Brasília, reconhecida nos festivais de Paulínia e Recife, agraciada com o Grande Prêmio do Cinema Brasileiro – o Oscar nacional – por sua atuação em Madame Satã (2002) e consagrada pela crítica especializada com dois Prêmios Guarani, com Pacarrete entrega mais um desempenho singular, digno de ocupar um lugar de destaque dentro de uma filmografia tão iluminada.

“Eu morri e esqueci de me avisar”. Combinando dor com alegria, humor com sofrimento, o diretor e roteirista cearense Allan Deberton em momento algum deixa transparecer sua condição de estreante no formato, tamanha é a segurança que transmita na condução de sua história, ao mesmo tempo em que cria o espaço necessário para que o elenco – que inclui ainda um excepcional João Miguel, Soia Lira em desempenho arrebatador e uma Zezita Matos que transborda emoção – possa brilhar sem distrações paralelas. Quanto à Marcélia Cartaxo, tem o espectador o prazer dilacerante de acompanhá-la em uma visita à casa abandonada, ela mesmo se vendo como algo que já foi grande e belo, e que agora precisa se contentar com as ruínas que carrega no rosto. Pacarrete brilha mesmo quando holofote algum lhe procura. As luzes estão se apagando, os assentos há muito estão desocupados. Mas isso pouco importa. O palco é dela, e ainda que seja pela última vez, nas pontas dos pés irá cumprir o prometido. Pois só assim seguirá viva.





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