CRÍTICA
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Robledo Milani
Ela varre a calçada como se cuidasse de todo o
mundo. A pedra, as flores, a porta, a casa: aquele é o seu domínio. Abraçada na
vassoura, dança como se estivesse no teatro municipal. É dona da própria arte,
e dela não irá desistir. Mesmo que todos ao seu redor estejam contra si: os
vizinhos que não lhe dão crédito, os conhecidos que a tratam como uma
alienígena, o governo que não reconhece seu valor. Até sob seu teto é vista com
desconfiança, seja pela irmã, que só lhe dá crédito por dela precisar, ou a empregada,
que parece pensar que ‘melhor o maluco que está por perto e sob controle do que
aquele longe que pode lhe dar dores de cabeça ainda maiores’. Mas quando nada
mais parece fazer sentido, será dentro de si o único lugar onde poderá se
refugiar em busca de algo perdido no tempo e no espaço. Ela é Pacarrete,
e ninguém poderá acabar com seus sonhos. Pois o tamanho deles, apenas ela é
quem determina.
“Aprendi a ouvir, pois percebi que nada tinha a
dizer”. Este é o pensamento que toma conta do pequeno povoado de Russas, no
interior do Ceará, mas que poderia estar perdido por qualquer canto deste vasto
Brasil. A festa de aniversário do município se aproxima, e Pacarrete está
decidida a se apresentar nas comemorações. Mandou fazer o melhor vestido,
desenhado de próprio punho, e treina sem parar. Não irá medir esforços, tamanha
é sua expectativa para esse grande dia. No entanto, a Secretária de Cultura não
consegue vislumbrar como encaixar um número de balé no meio de um show de
forró. O povo quer beber e se divertir. Quer esquecer das tristezas e celebrar
sem pensar no amanhã. Pacarrete, por sua vez, quer recuperar a lucidez, encara
com seriedade o seu talento, e vê como única forma de reencontrar os dias
felizes que viveu olhando para o ontem. Afinal, foi lá onde ficou sua alegria.
“E eu sou lá mulher de contar misérias?”. Assim, não dá ouvidos a ninguém que tenta
demovê-la de tal ideia. A costureira que vê dificuldade no figurino pela outra
imaginado, a burocrata que prefere se esconder e inventar desculpas a ter que
lidar com a ansiedade da artista, os meninos que a tratam como louca ao
incomodá-la com a campainha. Somente Miguel, dono do bar, lhe oferece um pouco
de carinho. O flerte entre eles pende mais para um lado do que outro, mas não
deixa de ser real. Pacarrete fica com inveja dos olhares dele e se derrete com
sua proximidade. Ele, por sua vez, lhe oferece o afeto que ela tanto necessita,
movido mais por compaixão do que por um ímpeto sexual. Percebe as
excentricidades da vizinha, e por ela sente um entendimento elevado, misto de
pena com empatia. Concede um agrado calculado, seja numa atenção especial, numa
palavra de encorajamento, num cuidado singelo. É uma relação de puro afeto. E
para quem nada tem, o pouco que recebe faz toda a diferença.
“Grito tanto que ninguém me escuta”. Pacarrete não
fala: projeta a própria voz sempre um tom acima. Ela não aparece, se manifesta.
Não pede, ordena. O jeito particular de agir é na medida exata para criar um
tipo como nenhum outro. Paccarrete é a nova Macabéa, uma Laurita envelhecida, a
Querência que um dia ganhou a cidade. Marcélia Cartaxo, no papel da
protagonista, mergulha de corpo e alma na pele de uma mulher sofrida, que
deixou quem um dia foi para trás quando a família precisou, e agora se agarra
com todas as forças na única oportunidade que vislumbra de reviver, nem que por
apenas alguns instantes, a glória que já desfrutou. Uma das mais premiadas
atrizes brasileiras, condecorada no Festival de Berlim logo em sua estreia, com
A Hora da Estrela (1985), vencedora de quatro Candangos no Festival de Brasília,
reconhecida nos festivais de Paulínia e Recife, agraciada com o Grande Prêmio
do Cinema Brasileiro – o Oscar nacional – por sua atuação em Madame Satã (2002)
e consagrada pela crítica especializada com dois Prêmios Guarani, com Pacarrete
entrega mais um desempenho singular, digno de ocupar um lugar de destaque
dentro de uma filmografia tão iluminada.
“Eu morri e esqueci de me avisar”. Combinando dor
com alegria, humor com sofrimento, o diretor e roteirista cearense Allan
Deberton em momento algum deixa transparecer sua condição de estreante no
formato, tamanha é a segurança que transmita na condução de sua história, ao
mesmo tempo em que cria o espaço necessário para que o elenco – que inclui
ainda um excepcional João Miguel, Soia Lira em desempenho arrebatador e uma
Zezita Matos que transborda emoção – possa brilhar sem distrações paralelas.
Quanto à Marcélia Cartaxo, tem o espectador o prazer dilacerante de
acompanhá-la em uma visita à casa abandonada, ela mesmo se vendo como algo que
já foi grande e belo, e que agora precisa se contentar com as ruínas que
carrega no rosto. Pacarrete brilha mesmo quando holofote algum lhe procura. As
luzes estão se apagando, os assentos há muito estão desocupados. Mas isso pouco
importa. O palco é dela, e ainda que seja pela última vez, nas pontas dos pés
irá cumprir o prometido. Pois só assim seguirá viva.
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