Cleudimar Ferreira
Acorda,
acorda!
Acorda
que hoje é noite de São João.
Ah!...
Tão esquecendo que vai ter um grande baile na casa de Zuza Emídio!
Assim falava minha mãe, batendo forte nos
punhos das redes onde dormíamos, acordando-nos logo sedo, na manhã daquele dia.
Estonteados e desorientados, pulávamos no chão e ainda com os olhos pregados de
remelas, corríamos em direção à cozinha. Sentávamos a mesa, repleta de espigas
de milho cozinhadas; um bolo de milho assado em de forno de lenha - que meu pai
no verão havia instalado no terreiro da cozinha; e pratos de canjicas, que
enfeitava de amarelo-ouro aquela nossa primeira refeição do dia.
O meu pai já impaciente - e com razão,
resmungava, passando para lá e para cá, quase tirando faísca da mesa,
arregalando seus olhos para nós, pois naquele dia fora o primeiro a acordar
cedinho e já havia feito a sua habitual tarefa vespertina - a de ir buscar água
no riacho, encher os potes do líquido e tirar o leite das cabras. Minutos
depois, já estava esperando a nossa chegada no “peituri” da casa. E assim, seguirmos
todos em direção ao Rio Santo Antônio, buscar troncos secos de árvores para montagem
da fogueira de São João.
Quando despontávamos no alpendre da casa onde
morávamos, a cangalha já estava arranchada no inspiaço de jandaíra, que passivo
como sempre, aguardava juntamente com meu pai a nossa chegada. Eu era o
primeiro a subir no lombo do animal e a minha irmã, se arranchava como podia na
garupa. Segurando as rédeas, conduzíamos aquele pobre jumento em direção os
baixios onde ficava o rio.
De ladeira abaixo, no sinuoso percurso que
traçava aquela formação irregular do solo, ora lajeiro, ora paredão rochoso ou
pedregulho que nos levava até o rio, o que se via nas beiradas do caminho além
das roças de milho e feijão, eram pessoas que iam e vinham. Muitas delas,
trazendo verduras, legumes e frutas frescas colhidas nos roçados. Outras
conduzindo nos cambitos dos burros, enormes pedaços de madeiras secas, apodrecidas.
Naquela descida que nossos passos trançavam, sempre que cruzávamos com uma
daquelas pessoas, o cumprimento já significava uma parada obrigatória. E na
conversa ligeira, o assunto era a mesmo:
- Bom
dia compade João.
- Bom
dia compade Zé.
- Vai
hoje pô baile de Zuza Emídio?
-
Voou!... Respondia meu pai ao amigo João.
E assim continuava a conversa...
-
Parece compadre João, que o tocador vai ser Manel Filipe.
-
Apois não é mesmo, compade Zé!
-
Tomara que seja compade, o home toca muito.
- É... Compadre. Eu não vi até hoje, um caba pá tocar tão bem como Manel
Filipe. E olhe! Só toca Trio Nordestino e Noca do Acordeom.
- É
mesmo, aqui na nossa região, ninguém toca melhor do que ele não!
A conversa não podia ser extensiva, pois o meu
pai precisava ser rápido na sua caça os troncos secos e se não agisse assim,
poderia até não encontrar mais a tão preciosa madeira, já que a procura era
grande.
Casa (com alpendre) onde morávamos no Sitio Catolé
As toras de paus eram trazidas a reboque na
correnteza durante as primeiras grandes cheias do ano que o rio dava. Ficavam
engasgadas na pequena vegetação que protegia as margens, em toda extensão do
rio. Mesmo o rio ainda não estando com muita água, pulávamos todos naquela
correnteza, seguíamos em direção aos troncos que estavam na outra margem. Abraçávamos
aqueles pedaços de pau e com a ajuda da correnteza levávamos boiando a “tora”
até a outra margem do velho Santo Antônio; num trabalho conjunto que unia
todos, eu, minha irmã e o meu pai. Já em terra firme, na margem do rio onde
ficava jandaira e os nossos apetrechos, pegávamos os paus-secos e amarrávamos
com uma corda, puxávamos até um local mais seguro, um banco de areia,
escorávamos as “toras” na cangalha de Jandaíra e rumávamos de volta para casa.
Esso era um momento de festa e divertimento para todos nós.
Na volta, o caminho que nos conduzíamos a
residência onde morávamos, boa parte do seu percurso era tomado por grandes
roçados de milho, e aquele cortejo tendo como guia o jumento “jandaira”, fazia
o bicho subir aquela imensa ladeira a reboque. E assim, seguíamos rumo ao
terreiro de nossa casa, com meu pai sempre tocando infeliz animal à base do
açoite. Vez por outra ele, parava e entrava no imenso milharal a beira do
caminho e saia quebrando as espigas e jogando em nossa direção. Pegamos as
gordas espigas verdinhas ainda regadas com pingos do orvalho da noite anterior
e aos poucos eu e minha irmã íamos enchendo os caçoas.
Ao chegar a nossa casa, desbancávamos as toras
de paus e os caçoas cheios com as espigas de milho. Minha mãe e as minhas
outras duas irmãs, viravam os caçoas e ali mesmo, começavam a desfolhar as
espigas que seriam usadas para fazer a costumeira canjica, além da pamonha e o
bolo assado com gordura de porco, cuja forma era feita de palha de bananeira,
assado em forno a lenha.
Na localidade onde morávamos, as residências
não ficavam muito distantes uma das outras e o empenho de todos, para armar a
maior fogueira do lugar, a cada ano ia se tornando numa saudável disputa. A queima
no período das festas junina, era quase num ritual sagrada, pois era nelas que
muita gente fazia seu pedido a São João e a São Pedro e se tornavam “Compadre”
umas das outras. Dessa forma se firmava cada vez mais o laço de amizades que
uniam todos. Era compadre e comadre “praquí” e “praculá”. E para tanto, as
fogueiras tinham que serem grandes, pois a madeira colhida precisava queimar a
noite toda indo até à tarde ou a noite do outro dia. Pois como era dia de São
João, a tarde desse dia, o costumo de todos e meu pai não deixava passar em
branco, era soltar o resto das bombas, traques e rojões guardados com carinho
para festejar a tão importante ocasião.
O dia passava rápido, as tarefas de nossa
família iam sendo compridas. Minha mãe já havia engomado todos as roupas que
íamos vestir naquela noite. Vez por outra, ela saia para casa de um vizinho à
procura de alguma coisa que faltava para os preparativos do grande baile. Da
mesma forma, nossa casa também era visitada por uma comadre que chegava atrás
de algo que faltava em sua casa. Todos naquela localidade, se ajudavam como
podiam para não faltar nada e não perder o baile.
Casa do Senhor Zuza Emídio, onde eram realizados os grandes bailes de forró, a maioria animado por Manel Filipe.
Quando aproximava às seis da noite, já
estávamos todos vestidos e perfumados. E assim... sem muito demora, seguíamos
com as demais pessoas em direção a casa de Zuza Emídio. O primeiro e complicado
obstáculo para se chegar ao grande baile, era o rio, pois naquele período
junino, o mesmo sempre tomava muita água das últimas chuvas do inverno. Quando
aproximávamos da margem do Santa Antônio, as mulheres tinham que parar, se
acocorar e esperar que os homens e as crianças do sexo masculino chegassem até
a beira do rio. E lá, se despissem, pegassem uma balsa feita de troncos de
bananeiras - que já havia no local. Sobre a balsa, eram colocadas as crianças que
não sabiam nadar e as roupas e os adereços de todos. Como todos os homens ali
sabiam nadar muito bem, dois ficavam para conduzir, guiar a balsa até a outra
margem onde seguia o caminho até o local do baile, e as outros enfrentaram as
águas corretes do rio a braço. E assim atravessam o rio.
Chegando no outro lado do rio, na outra margem,
todos vestiam suas roupas e andavam uns trinta metros, depois paravam para
esperar as mulheres que viriam logo a seguir. Para que as mulheres
atravessassem as correntezas do rio, um dos homens voltava sozinho, nadando,
conduzindo a balsa até o outro lado do rio, para que as mulheres fizessem o
mesmo trabalho que os homens haviam feitos, e assim, também atravessar. Ao
chegar com a balsa na margem do rio onde as mulheres esperavam, o condutor da
balsa ancorava a mesma no local combinado e gritava alto:
- Podem vir agora!
Imediatamente, esse mergulhava no rio de volta
ao local onde os outros homens esperavam.
Após atravessar o rio, seguíamos todos em
direção ao local do forró, a residência de Zuza Emídio. Como era noite de São
João, as casas que ficavam a margem do caminho onde passávamos, víamos as
fogueiras queimando, crianças soltando bombinhas. Em muitas casas, as famílias
estavam saindo para ir também ao forró e se juntavam conosco em direção a casa
de Zuza Emídio. Quando chegávamos, já havia muitas gentes no meio do terreiro
batido a maio. Bandeirinhas esticadas enfeitando o teto do terreiro. Uma magia
de cores que meus olhos viam, que não havia igual. A elegância das moças e
rapazes; das senhoras e dos senhores; das esposas e dos esposos, evidenciava
que a festa seria grande.
No terreiro iluminado por lampiões a álcool e
fachos de fogo provocado por algodão úmido em querosene, aparecia no canto da
parede Manoel Filipe e o seu conjunto. Quando a sanfona vermelha do jovem
tocador era retirada da caixa, crianças e curiosos faziam um círculo ao redor
do forrozeiro. E assim, sobre os olhares de todos, se prepara Manoel Filipe até
o início do forró. Quando começava o baile, os casais se atracavam no meio daquele
terreiro, preparado com barro massapê e areia grossa, trabalhado com carinho em
três camadas por homens da comunidade do entorno da casa de Zuza Emídio.
A animação tomava conta de todos. O sanfoneiro
sem parar, rasgava a sua sanfona tocando músicas de Luiz Gonzaga, Trio
Nordestino, Noca do Acordeom e outras estrelas do xote, do forró, do baião e do
xaxado nordestino. Depois de algumas horas, a poeira tomava conta do terreiro,
cobria todos de terra, de pó fino. E assim, o baile era interrompido, para que
fosse aguado o terreiro, para em seguida ser recomeçado o baile.
Manel Filipe (in memoriam) era o melhor sanfoneiro da época
Quando o baile recomeçava, iniciavam também a
cobrança da cota. Durante esse momento, duas pessoas de confiança de Zuza
Emídio, apartava os casais que estavam dançando e cobrava apenas dos homens um
valor simbólico, que dava direito ele dançar com qualquer parceira, até o final
do baile, as seis da manhã, ao raiar do sol. As horas passavam, mas a noite
parecia não ter fim. Por volta das duas da madrugada, muita gente no terreiro,
prenunciava que o forró estava no seu maior momento. Nesse momento, as
lembranças me vêm à tona, e me faz lembrar que as crianças, inclusive as minhas
irmãs, já estavam dormindo nas redes improvisadas, nos quartos que ficavam nos
fundos da casa do dono da festa.
A essas horas da noite, sobre a penumbra dos
lampiões que ficavam distantes, alguns casais deixavam o terreiro do forró e se
dirigiam aos arredores e encostavam nas cercas e nos carros, para iniciar
nesses locais os primeiros namoricos. Os casais pegavam suas crianças
embebecidas de sono e saiam por entre as bancas mostrando e oferecendo aos seus
filhos, comidas e outros mangaios comuns do período junino, como: Bolos de
milhos ou de caco, beiju, tapioca, garapa de cana, café e até kisuco de morango
com pão doce. Misturados com os bombons, com os Chicletes Proc e PingPong, além
dos Chocolates Sonha de Valsa e os pirulitos coloridos, constituíam os
confeitos trazidos da cidade, que se tornavam nos olhos das crianças, uma
novidade, já que não era de costume esse tipo de merenda nos paladares das
crianças que moravam naquela região onde também ficava a casa de Zuza Emídio.
Nas banquinhas de festejos; as chuvinhas, os
traques eram os melhores atrativos para as crianças, que se deslocavam com seus
pais até a imensa fogueira, para soltá-los ou esquentar o frio da madrugada.
Tudo isso acontecia sob o meu olhar, sob os olhares de muitas crianças que como
eu viveu esse tempo. Sob os olhares das minhas irmãs, pois parte do forró meu
pai ficava com Adonias ajudando Zuza Emídio na venda das bebidas e minha mãe na
cozinha ou conversando com a comadres nos arredores daquele terreiro lotado de
gente dançando, avivados e animados ao som da sanfona de Manel Filipe,
principalmente por ser aquela noite, a noite de São João.
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Colaboração: Sag. Marcos Aurélio Ferreira Alves
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