domingo, 12 de fevereiro de 2017

Dois causos publicados pela Jornalista Mariana Moreira, no Jornal A União, década de 80.

Pesquisa feita por Cleudimar Ferreira

Ambiente de antiga "Bodega" do interior do Nordeste

Alguns causos nossos...
Mariana Moreira

            Sábado. Final de semana é um bom espaço para se contar causos e outros acontecimentos. Dai de lembrar o “oitão” da casa do sítio, onde o patrão se reúne com todos seus moradores, agregados, “compadres” e amigos, para acertarem a empreita da broca, pagar a “arranca de toco”, pesar o algodão apanhado na semana, fazer as contas ou simplesmente tomar um “xicão” de café da comadre, torrado em casa e adoçado com rapadura.

            Nesse universo, inflação se chama carestia. Como seu Ontoin Boge – é Ontoin mesmo, e seu inseparável cigarro de fumo displicentemente esquecido no canto da boca, seu “artifício” de chifre de boi e cheio de algodão queimado, despertando a curiosidade infantil. Ele chagava sempre mesmo, prendendo ao dedo meio quilo de toucinho de porco comprado fiado na bodega do compadre Antônio Marais. Soltando uma monumental cuspida no terreiro levantando poeira falava espantado o preço do café sempre concluindo com uma reclamação tão antiga como as serras que lhe serviam de cenário: “desse jeito onde vamos parar”.

            Juntando-se ao grupo chegava Ontoin Monteiro com suas pequenas orelhas que lembravam tampas de refrigerantes bebidos no pátio da Capela em dia de missa. Sempre reclamando da vida dura que levava, onde a seca, a lagarta ou a chuva forte frustravam as expectativas de uma boa safra. “Vou embora dessa onça, que isso não é terra de home”, afirmava, para desespero de sua mulher, Zefa Boge, uma fada na confecção de bonecas de pano que povoavam nossas casinhas de brinquedo. E ele cumpriu a ameaça, procurando, como tantos dos nossos, melhores dias no solo paulista. Se conseguiu...

            Num canto, ouvindo a conversa e resmungando baixinho, amaciando na mão o fumo de rolo que enrolava com maestria em cigarros de palha estava o cego Zé Pisco. Não sei porque toda história do interior sempre tem um cego? Com a fala gago ele pouco participava da conversa, limitando-se mais a ouvir embora guardasse enormes segredos da gente do lugar que, como todos nós, enganavam-se ao pensar que cego e moco, não se constrangendo em botar para fora intimidades ou segredo cabeludos na sua presença. Ele só se manifestava mesmo quando alguém do oitão da casa, ou algum moleque mais ousado passava pela estrada e pressentindo sua presença, metia o grito no ar... “Olha o urubu no arroz”. Pobre daquele que tivesse mãe, era um deus nos acuda, tamanha eram as pragas, irritação também aparecia em seus olhos de cego quando alguém lembrava do incidente em que ele, certa vez, a beira e uma estrada, usou folhas de urtiga como se papel higiênico. Era como jogar sal em sapo... São causos de uma distância onde a televisão era conversa de todos como alguma coisa irreal. Onde o rádio era um “Transglobo” na mesinha da sala, embaixo do quadro do Coração de Jesus e da mancha de fumaça da lamparina na parede. Hoje, poucos conseguem reeditar esse tempo... 

Caipira picando fumo (detalhes) Almeida Júnior 

As análises do Zé
Mariana Moreira

            Sempre as quartas-feiras, dia de uma pequena feira livre em Cajazeiras, corre-se o risco de se topar com algum conhecido do Cipó nas proximidades do Cine Pax, onde costumam parar os carros que fazem linhas praquelas bandas. E hoje não deu outra. No caminho para o trabalho, de cara dou logo cm o Zé da Crença, que andava meio desaparecido. Descendo do velho caminhão de três boleias de Joaquim de Rita ele caminhava na direção da bodega do seu Raimundo, para onde converge toda a turma que chega dos sítios e vai tomar uma banquinha para esquentar o frio do caminho. Não dispensando uns dedos de prosa com o velho amigo, tento me informar das últimas novidades cipoenses.

            A primeira delas, solta Zé da Crença, é que já temos telefone por lá. –Dia desses a pobre da comande Raimunda de Tico Mão de Onça quase chora de alegria falano com os menino dela que tão pras banda de São Paulo. Outro que não desaprega do aparelho é o Chiquinho Zanoi. Todo dia tá ele lá falano com Rosinha Bochechuda, sua namorada que foi pra Goiás com os irmãos, depois que andaram espalhando lá pela ribeira que ela tinha se perdido num forró em casa de Espedito Tributino. Não muito interessada nas fofocas que andam por corredores e ladeiras, calçadas e bocas de noite do Cipó, tento arrastar o interesse do Zé para a política, na esperança de conseguir sua análise sobre o atual quadro paraibano nestes tempos de sucessão estadual.

            Como sua natural desconfiança ele me olha meio atravessado, faz cara de poucos amigos e nada fala. Conhecendo sua cautela em se meter em coisas que ele considera “nim de galinha choca com pichilinga”. Não desisto e volto a cutucá-lo para saber o que ele acha dessas reviravoltas que estão acontecendo por aí. Vencido pelo cansaço ele solta o verbo, dizendo que a situação política atual na Paraíba, pelos poucos conhecimentos do assunto e pelo muito que andou matutando no cabo da enxada, parece mais cozinha de casa de beradeiro em dia de casamento, quando as cumade do lugar se arreune e falam ao mesmo tempo sem se entender nada. Não satisfeita, tento saber qual a impressão do Zé sobre a filiação de Burity nesse nessa história, é a dona da casa, que falano ao mesmo tempo das outras, sabe onde encontra-se o frasco de alçafroa.

            A comparação não satisfaz minha curiosidade, mas, sabedora do recatamento a que o Zé se recolhe quando abordado sobre política, volto o assunto, então, para o Cipó, no que ele solta a língua e faz verdadeiros discursos. Antes mesmo de fazer qualquer pergunta, lá vem o Zé me contando do causo que se assucedeu com a Maria de Chico Barreto que, molecote ainda, mas de andar faceito e dotes físicos primorosos, caiu na desgraça com o Aristide de Cazuza Marculino, que não quis se casar dizendo, veja só, que a pobre menina já tinha lá seus pecados. O Chico Barreto pra não se aguentar de desgosto, tentou se matar, coma família encontrando com a corda no pescoço e a cabeça já arroxeano pendurado num gaio de jurema preta.

            Agora, desventura mesmo, foi do Mundim Caipora, que começou a arrastar a asa pra uma muié de vida lá da Nova Brasília e por causa desse amor, botou tudo o que possuía no mato pra viver com a danada, e hoje, na misera, foi abandonado e encontra-se entonado da cachaça. Gostaria de me inteirar melhor das novidades do Cipó, mas o relógio me alertava que estava atrasada para o trabalho. Me despeço do Zé da Crença que, como presente final pelo reencontro e pela prosa, diz para não ficar acabrunhada com a questão política, porque isso tá mais bagunçado do que acampamento de cigano.




fonte: Jornal A União, primeira metade da década de 80.

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