O garoto era filho do delegado
Francisco Alexandre Gomes
Em dia de feira, apesar disse, não havia quase
ninguém no açougue, e os fregueses estavam vasqueiros. O “Capitão” após o
almoço sentou-se num tamborete alto e começou a cochilar. Entre um cochilo e
outro, ele notou que um garoto de aproximadamente 12 anos estava tirando
filetes da carne seca de dois carneiros exposta na pedra do açougue. A princípio
não ligou aquilo, mas o bambino continuava a tirar pedacinhos da carne e a
comer os pedacinhos que tirava. Aos poucos o “Capitão” fora se aborrecendo com
a traquinagem da criança e levantando-se do tamborete viu que o menino estava
com o dedão do pê muito inflamado. Havia ele sofrido uma topada, e o dedo
estava muito inchado e cheio de pus. Parecia a cabeça de um cágado. Vendo
aquilo o “Capitão”, que era homem perverso, teve uma infeliz ideia: pisou propositadamente no dedo ferido do
garoto dizendo-lhe: “Cri Jisus, meu fio, deixe eu tirá um pedacinho de carne
para voimicê”. O menino nesse momento caía ao solo segurando a perna e gritando
de dor. Saiu dalí com o pé coberto de sangue.
Minutos depois chegava ao açougue o pai do garoto,
que era também o delegado da cidade, e vinha muito furioso. Ele queria saber
quem tinha feito aquilo com seu filho menor. Mas o “Capitão”, que era homem de
sangue frio e que com seus repentes sempre se saia bem nas piores situações,
lhe respondeu com estas palavras: “Cri Jesus, seu sagente delegado, o bichim
estava aqui e eu fui tirá um pedacinho de carne pra ele e num veno o pezim dele
pisei, mais aqui tá a carne, leve pra ele”. O pai diante destas palavras perdeu
toda a raiva e nada mais fez do que receber o bom pedaço de carne, agradecer ao
“Capitão” e se dirigir a sua casa.
As 15 horas, o “Capitão” deixava o açougue e
dirigia-se à feira para fazer as compras da semana. O garoto que teve o dedão
do seu pé molestrado pelo “Capitão” tinha muito amigos e a eles contou o que
havia lhe acontecido no açougue e quem era o autor da maldade. Os meninos, em
número de dez, acompanhavam o “Capitão” de banca em banca e de rua em rua e diziam-lhe:
“Que veio da ureona! Parece um boi no roçado. Num é turma? ”
Havia entre eles um que já tinha perto de 16
anos. Era um garoto magricelo e sarará. Esse não largava o pé do “Capitão”
repetindo sempre: “Vamo medir as ureia, veio!” O velho, na verdade, tinha um
par de orelhas que eram nada mole. Parecia mesmo um boi de raça.
A tarde já morria por trás do riacho
Cajazeiras, mas a turma não largava o velho açougueiro, que já estava de saco
mais do que cheio com aquilo, em dado momento, o garoto sarará aproximou-se
muito do “Capitão” que naquele instante pegou o menino pela orelha e
enfiando-lhe a longa e afiadíssima unha no tronco da mesma falou-lhe: “Cri
Jisus, meu fio, voimicê tem razão, a minha ureia é maió duque a sua mermo”.
Enquanto dizia estas palavras levantava o menino pela orelha até que pôde
encostar o aparelho auditivo do garoto ao pavilhão do seu. Depois soltou o
menino que saiu gritando com a orelha rasgada e banhado em sangue. O “Capitão”
era um homem muito perverso.
Ele
era bom de caça?
Francisco Alexandre Gomes
Em uma de suas viagens ao Mossoró, o “Capitão”
pernoitou na casa de Severino Gago, velho fazendeiro do qual era amigo de
longas datas. No dia seguinte, pretendia continuar a viagem ao quebrar da
barra, mas acontece que, como sempre, ele levava carne de sol para vender no
Rio Grande do Norte. Entretanto, depois de dois dias de viagem a carne, que era
carregada em fardos, precisava ser estendida em uma corda, por um bom espaço de
tempo para que não arruinasse e era preciso também tirar alguns bichinhos de
correição que toda carne seca cria.
Diante da necessidade permanecer por mais
algumas horas na casa do velho amigo Severino Gago, o “Capitão” resolveu que só
continuaria a viagem depois do almoço. Com esta resolução chamou seu filho José
e com ele foi estender a carne numa corda que havia amarrado em duas estacas e
uma cerca velha que ficava próxima da casa da fazenda. Feito isso, mandou que o
filho ficasse cuidando da carne enquanto ele ia tirar uma soneca. José deveria
ter também o cuidado para que algum urubu faminto não viesse banquetear-se com
os carneiros estendidos ao sol. Mas o menino não poderia cuidar da carne
sossegado, pois o cachorro da casa veio deitar-se junto a corda de carne e não
deixava o garoto se aproximar. Toda vez que o menino se aproximava, o cão o
ameaçava com seus dentes agudos.
Preocupado e com medo o garoto foi comunicar ao
pai o que estava acontecendo. O “Capitão”, que dormia no cômodo da casa que a
ele fora reservado, mandou que José botasse o tacho no fogo e quando a água
estivesse fervendo fosse lhe avisar. O menino fez como o pai ordenou e quando a
água estava fervendo foi comunicar-lhe. Aí, o “Capitão” levantou-se. Pegou o
tacho com a água fervendo, e foi até onde estava o cachorro, e sobre ele jogou
toda a água fervente que tinha na vasilha. O cão recebendo o banho quente saiu
dali em louca carreira, latindo desesperadamente.
O dono da casa vendo que seu cachorro de
estimação saia como louco de capoeira a fora, entrou na casa e encontrando o “Capitão”
na sala perguntou-lhe se ele sabia o que havia acontecido ao seu Rompe-Ferro ao
que o “Capitão respondeu: “Cri Jisus, meu cumpade! Seu cachorrinho é bom de
caça? “É, sim, senhor! Confirmou o dono da casa e o “Capitão” completou: “Apois
se ele é bom de caça, eu vi quando um bichim vremeio passou correndo alí
naquela capoeira e vi o seu cãozinho sair atrás dele. Me pareceu que era um
viado”. O home voltou à mesa de jogo e o “Capitão” carregou os animais e continuou
a viagem.
Dois meses depois, o velho sertanejo voltava a
pernoitar na mesma fazenda e entre uma conversa e outra o compadre Severino
Gago lhe dizia que havia encontrado seu cão morto, dentro do açude, três dias
depois da saída do “Capitão”, e que o mesmo estava morto largando os pedaços. O
“Capitão” demonstrando que estava penalizado pela morte do cachorro do amigo
largou-lhe esta: “Cri Jisus, meu cumpade! Essa é uma doença horrive que tá dano
no que é de cachorro, voimicê num encontra um nem pra fazê remeido”.
A burra
de estimação e a chave do sacrário
Francisco Alexandre Gomes
Mimosa era o orgulho do “Capitão”. Ele a tinha
em consideração de gente da família, e ela parecia entender suas ordens e no
brilho dos olhos negros, grandes e cheios de vivacidade parecia demonstrar uma
afetividade de criança para com o “Capitão”. Muitas vezes, ao aproximar-se
dele, roçava-lhe ao peito largo e forte do velho sertanejo a cabeça ou umedecia-lhe
as mãos e o rosto com seus inocentes beijos molhados de saliva. Ele a tinha
criado desde pequenina, alimentando-a mamadeira, posto que sua mãe havia
morrido, logo que ela nasceu, vitimada por mordida de cobra cascavel.
Nas viagens que o “Capitão” fazia a Mossoró,
indo buscar sal de cozinha para abastecer as cidades de Cajazeiras, Sousa e São
João do Rio do Peixe, ela era a frente, e quem comandava todas as outras, e a
tangida só andava mais depressa graças ao seu passo largo e a sua admirável coragem
e resistência incomparável. Dir-se-ia que ela nunca se cansava, mesmo sendo as
viagens longas e cansativas. Seu pelo negro e reluzente nunca fora maltratado
pelo chicote do tangerino, como o de suas companheiras que, aqui e acolá, além
dos gritos do “Capitão” recebiam no lombo boas lategadas de fogo.
Naquela manhã, cinzenta, sem canto de pássaro,
sem nuvens no céu, sem o Aracati e sem a costumeira alegria das manhãs
sertanejas, o “Capitão” após uma noite mal dormida e cheia de pesadelos tomou
uma firme resolução: iria a Cajazeiras, falar com o vigário da cidade, mentiria
para ele, mas traria a chave do sacrário. Não iria de forma alguma deixar que
Mimosa corresse doida como o maldito cachorro que a mordera no dia anterior.
Não sabia de onde havia vindo o desgraçado do cão hidrófobo que no terreiro de
sua casa fizera a desgraça de morder sua Mimosa. No chumbo grosso do seu
bacamarte, o miserável foi para os infernos, mas Mimosa apesar de haver comido
quase uma traça de alho, não estava fora de perigo e poderia morrer de uma hora
para outra.
Com esta resolução, não esperou mais. Selou o
cavalo e rumou para a cidade de Cajazeiras. Aqui chegando foi direto à casa do vigário
e para ele foi expondo seu problema: precisava da chave do sacrário para botar
na boca de um ente querido que havia sido mordido por um cachorro doido. Essa
era a única esperança para velho sertanejo, pois na época não havia ainda
vacina contra hidrofobia e, como todo sertanejo, ele acreditava piamente que
botando-se a chave do sacrário na boca de um cristão ou de um animal mordido
por cão hidrófobo a vítima não morreria.
O padre apesar de padre também era sertanejo e
como o “Capitão”. Também tinha suas crendices. Assim sendo, entregou a chave do
sacrário ao velho que tão logo a recebeu tratou de chegar a casa o mais depressa
possível, e lá chagando, foi mediatamente até Mimosa e na boca da mesma, a
chave colocou por um bom tempo. Mas quando voltou no dia seguinte para devolver
a chave o padre já estava sabendo o que havia feito o “Capitão” e o repreendeu
severamente, mas como o “Capitão” nunca fora homem de levar desaforo para casa,
retrucou ao reverendo com estas palavras: “Cri Jisus, seu padre, voimicê só diz
isso pruque voimecê nunca se casou e nem nunca teve uma burra de estimação no
ceicado pra lhe seivir nas horas de aperreio”.
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