Como na cena do filme Viridiana, de Luiz Buñel,
onde mendigos invadem uma casa abastada, e a mesa, reinventam uma última ceia
pelo avesso, assim os atores do Grupo Terra, invadiram a capela do Colégio
Padre Rolim, tomaram os microfones e abriram oficialmente o IX Festival de
Artes da Paraíba. “Esses meus companheiros de sonhos, vendedores de ilusões,
estão cansados de esperar”, disse o andrajoso líder dos anciões, encarnado pelo
ator Eliezer Filho. A intervenção surpreendeu a todos pela perfeita
plasticidade e ideal caracterização dos tipos.
Pródigo se mostrou o festival em intervenções dessa
natureza. A mais espetacular delas ocorreu no teatro Íracles Pires, quando era
mostrada a peça Um edifício chamado 200, de Paulo Pontes. Tudo começou quando o
juiz da cidade, embriagado de direito e de fato, interrompeu a peça e ficou com
o Ibope da noite. Pulverizou a plateia como o discurso que sempre sonhou
desengasgar um dia. Berrou ser o espetáculo atentatório a moral e aos bons
costumes. Os atores pararam, as luzes se acenderam e os aplausos espoucaram
para e melhor intervenção teatral da semana.
A porção erótica e mulher de Eulajose Dias de
Araújo, foi mostrada por Maria da Bethânia, num teatro de sombras. Um espetáculo
capaz de fazer gargalhar, “a triste noiva do faquir”. O poeta e também
barbeiro, é um desses veteranos de festival, e agora, descambando da casa dos
50 anos, afirmou ter chegado a uma fase de erotismo exacerbado. E o livro
Diluvio de palavras, lançado durante o festival, é uma prova disse. A menina
soube captar nesses cataclismas eulajoseanos as mais densas e compactas nuvens
poéticas.
Um dia a cidade amanheceu repleta de cartazes:
“Olhem para o Cristo as 17 horas”, apregoavam eles. Um grupo ia apresentar uma
dança com lençóis. Tudo pronto, mas eis que apareceu um bêbado, arrebentou
alguns panos e subindo no Cristo, os deixou esvoaçantes, atados aos braços da
estátua, um descontraído rapaz, tentando recuperá-los, galgou apenas a base do
Cristo e não teve mais coragem de subir o resto. Então ele triunfalmente resolveu
não desperdiçar a plateia desabotoando a bermudinha jeans para mais uma
demonstração (nota-se que foi o mesmo cara que tirou no Bar da Estação e no
Colégio Padre Rolim) “Esse é o pior straip que já vi” reclamou uma garota
passando mal e jurando se atirar serrote abaixo se o desacorçoado consumasse o
ato. Quem olhou pro Cristo àquela hora, com certeza se arrependeu.
O açude de Cajazeiras, escaldante sob um sol
que é a caldeira do padre eterno, está a merecer poemas de um Paulo Vieira
local. Ali onde sangra os esgotos os pequenos viventes suburbanos tchinbungam
para um banquete de verminose, mas crescem sadios e viris como uma vingança
poética. “Os sertanejos são antes de tudo um forte”, como bem disseram F. Magalhães
e Euclides da Cunha, “ele como rapadura e não contai nada, nem AIDS”. Por falar nisso, a tal questão foi levantada
para uma bicha na rua. A boneca se torceu, se torceu, se armou e deu uma
botada: “meu filho aqui em Cajazeiras é mais fácil eu pegar um bucho”.
O que escapava a vista de muitos, era captado
e registrado sob as mais variadas formas. Um jornalzinho mimeografado circulou
pelos alojamentos durante a semana. Nada fugia a pena esculachava, aidosa e bem-humorada
do cartunista, Cristovam Tadeu que afixava seus escrotológicos desenhos nas
paredes do Padre Rolim. Improvisada ao sabor do momento, muitos dessas atitudes
não foram projetadas pelos burocratas do Festival de Artes, e não foi preciso
nenhum alvará para isso, porque o evento é do povo e deve ser multifacetado
como ele é. Majestoso e chulo, sagrado e profano, como Erendira e sua avó
desalmada, recriadas no cinema por Ruy Guerra e estampadas na tela do Cine
Éden. Após sua projeção, público certamente cismou que se deve destruir aquilo
que constrange e oprime, aquilo que os impede de enxergar as linhas de suas próprias
mãos, como a moça da película. Uma seção tão Brasil, tão Sertão, tão América Latina!
Durante o dia o malvado sol expulsava a gente
para as sombras dos pés de fícus e algarobas. À noite, Deus assoprava o Aracati
e os forasteiros encantavam a cidade. O teatro, o cinema e a praça espumavam de
gente. Quem não rolava por esses lugares biritavano bar da Estação ou no bar do
Tetéu. O Tetéu é o único cristão da cidade que não dorme desde que montou o
estabelecimento a quase dez anos. Ao invés de troféus e títulos, como
recompensa pelos seus eméritos serviços prestados a comunidade, deram-no um
apelido por causa de suas duas enormes olheiras que retém a insônia de
precisamente 9 anos, 185 dias e algumas horas.
Como os ciganos que frequentemente invadiam o
Macondo de Cem Anos de Solidão e instauravam na consciência da população o fascínio
pela magia e pelo desconhecido, os participantes do IX Festival de Artes da
Paraíba levantaram acampamento na então escaldante Cajazeiras, e, as barbas do
Padre Cícero, prepararam um espetáculo descomunal.
Artigo publicado no Jornal A União, em 1984, dia 20 (sexta-feira), Segundo Caderno, pág. 09.
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