memória
Reveja um artigo inteligente, bem-humorado de autoria de Chico César, que conta a história do antigo Grupo de Teatro Terra e a passagem do grupo por Brasília, durante o Projeto Mambembão de Artes Cênicas. O artigo foi publicado no Jornal O Norte, página 5, em julho de 1984.
Cajazeiras Mambembeia no Conchavódromo
por: Chico César (ao pessoal da FPTA).
Os lotes e superquadras de Brasília,
palco costumeiro de rachas, rixas, cochichos e conchavos de parlamentares, e,
vez por outra de algum concerto contemporâneo feito por centenas de buzinas,
vozes e panelas, está sendo abrigo provisório, durante esta semana, de outros
atores e outras apresentações. Trata-se do Projeto Mambembão. Nele, estão 14
meninos e meninas de Cajazeiras, integrantes do Grupo Terra, que foram ao
Distrito Federal para apresentar a peça “Beiço de Estada. ”
Depois de mambembear “o que há de bom”
em Brasília, ao lado dos grupos Só-diretas, Pro-diretas e Pós-diretas (?) o
Grupo Terra se apresentará em Porto Alegre, Curitiba, São Paulo e Rio de
Janeiro. Não se pode dizer que eles estejam procurando Sarney pra se coçar, mas
as notícias que chegam é que, ao pisa concreto na cidade-avião voo rasante –
assim cantada por Ednardo, não silenciaram e interviram no poema práxis
inaugurado por Niemayer e Juscelino.
O repórter Luis Turiba, do Jornal de Brasília
da última quarta-feira, conta que “eles deitaram falação sobre os assuntos do momento:
Roberta Close, sucessão presidencial, punk-break, Lula, Zé do Norte e miséria”.
Insatisfeitos com tanto bate-boca, ainda “acuraram o repórter de malufista. ”
A crítica do Última Hora, também de Brasília
do mesmo dia, considera que “Beiço de Estrada” é “um trabalho marcado pela
juventude e entusiasmo de um pessoal que escolheu o teatro para brincar a sério
com a vida. ” Para o crítico deste matutino os meninos de Cajazeiras estão aí, pedindo
passagem e dispensando afago da cabeça. Nem precoces nem iluminados. Simplesmente,
gente de teatro. ”
Um dos fatores que de imediato está
chamando atenção do público e da crítica do Planalto Central do País”, onde
Caetano Veloso se dispôs a organizar o movimento e orientar o carnaval, é a
pouca idade dos garotos de Padre Rolim. A média é de 18 anos, o mais velho é
diretor e tem 23, enquanto dois deles têm apenas 15 e para viajar precisam da
autorização dos pais e do Juizado de Menores da Comarca de Cajazeiras.
Nos meninos observa-se ainda o florescer
de um buço, leve ameaça de bigode em futuro longínquo. As meninas, como dirão
suas próprias mães, “ainda estão em formação” Algumas delas, como se dizem Nova
Olinda para a primeira menstruação, “quebraram o pote” a poucos dias: Estão
adolescendo juntos há nove anos. Descobrindo e inventando.
A impressão derradeira que se tem do
grupo não é a do sentimento paternalista. Isto é o que “Os Heróis de Cajazeiras”
como são chamados pela crítica brasiliense, mostraram há alguns meses, quando
arrumaram as malas e, só com as passagens de ida, foram para São Jose do Rio
Preto, onde participaram de um festival nacional de teatro e receberam a
terceira colocação. O público, segundo os integrantes do “Terra” queria o
primeiro lugar para “Beiço de Estrada” e protestou. O resultado foi a
realização de três apresentações, no Teatro Eugênio Kunset, em São Paulo, com o
apoio da classe teatral paulista.
A história desse grupo começou em um
fundo de quintal, de uma rua de nome Higino Rolim. Era uma vez, na cidade de
Cajazeiras, musa de Sergio Ricardo em “Noite de Espantalho”, uma patota de meninos
e meninazinhas que brincava de fazer drama, usando os lençóis e toalhas de suas
mães como pano-de-roda para ser o circo, ambiente clownesco para proteger a
emoção infanto-juvenil das brigas entre os caciques das oligarquias políticas
locais.
Para sonhar junto com estes pirralhos, a
meninada pagava um palito de fosforo, um maço de cigarro vazio ou um papel de
bala, sob a ameaça, e claro, de levar um ou outro cocorote ou tapa-ôi, materno
ou paterno, quem sabe até de um irmão mais velho. O poder reprimindo e tentando
negar o prazer. O lúdico sobrevivendo e antropofagizando: a patota se institucionalizou
e passou a se chamar Grupo de Teatro Mickey. A Disneylândia jamais conceberia o
simbólico como pagamento de sua fábrica de mitos. A brincadeira coisificada foi
negada no sertão da Paraíba e pra sempre será em qualquer lugar do mundo onde
houver meia dúzia de pessoas dispostas a fazer artes e manhas, tardes e manhãs,
inclusive noites.
Com a formalização da patota, aí veio “Chapeuzinho
Vermelho” e “Branca de Neves”. Depois o início da apropriação socialização de símbolos
do cotidiano como “Os mutantes”. Posteriormente, a criação com elementos
surreais em “O Sonho da Aranha” e de novo o regional, com “O Bando de Ciganos”
e “O Barraco”. O palco já não era só o quintal. Com o passar do tempo, choveram
convites para apresentações em colégios, grêmios, festas e finalmente, o corte
com o cordão umbilical das preocupadas mães cajazeirenses; a participação nos
festivais de teatro infantil em João Pessoa. Nessas viagens, ainda embaladas
pelo pó de pirlimpimpim de Sininho, a troca do Mickey pelo Terra montagem e a
de “Borboletas” Era o começo da década de 80 e eles estavam grandinhos. O país
se preparava para as eleições de 82. A anistia havia vindo restrita e parcial.
Eles começavam a viver isso.
Com “Borboletas”, veio o contato
primeiro com a Censura Federal em Campina Grande. A peça foi proibida para
menores de 18 anos e nenhum dos atores havia atingido ainda a maioridade, mas
todos já questionavam no espetáculo a ganância, a exploração de mão-de-obra, o
poder. Os inocentes foram chamados de comunistas e de subversivos e seguidores
de Karl Marx. Ninguém entendeu nada, e na volta para a cidade natal, depois da
geral que foi dada pelos censores, Cajazeiras olhou atravessado para os “esquerdistas”
isto resultou em um ano de silêncio e pesquisas. É possível que alguém deles,
depois de tanto alvoroço tenham procurado ler “O Capital” em quadrinhos. Grande
parte, porém deve te achado melhor, mais saudável e menos chato, apenas ver o
retrato do “mestre” em camisetas, onde está escrito: “trabalhadores de todo
mundo...”
Após o silêncio de quem sempre está
aprontando alguma coisa, veio a montagem de “Beiço de Estrada”. Projeto Vamos
Comer Teatro, Festival de Areia, São José do Rio Preto. Agora, Brasília. Depois
e sempre, o Brasil. E sempre o mundo. A presença deles no concha-vodromo, logo
notada pela imprensa local, pode ser apenas um aviso com endereço certo. Nada
de indiretas. Eles são meninos bem-comportados, alunos aplicados, mas, não
estudaram na cartilha da Aliança Para o Progresso e se negam a fazer fila
diante do Colégio Eleitoral. É isso aí, crianças de Cajazeiras, “Beiço de
Estrada”, neles. Já.
fonte: Jornal O Norte. Pág. 5, 22/julho/1984.
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