Hoje, dia 15 de julho, faz um mês que começamos a publicar neste blog,
em forma de retrospectiva, parte da produção literária de poemas produzidos por
jovens estudantes cajazeirenses na segunda metade da década de 70 e começo dos
anos 80. Mais do que um “retrô” é também uma justa homenagem que se faz a
juventude estudantil de cajazeiras das duas décadas, que através do exercício
sensitivo da poesia, caracterizada pelos antigos festivais patrocinados pelo
Centro Cívico Olavo Bilac do Colégio Estadual de Cajazeiras, é também um importante arquivo deixado para
gerações futuras. Um precioso acervo que demonstra bem a forma como se comportava
politico-social e ideologicamente os estudantes daquela época. Nos dias atuais, muitos são
senhores bem sucedidos e constituídos socialmente, porém há de convir que resguardam ainda o
gosto pela literatura, pelo jornalismo, cultura e arte. Uma prova que as raízes
fincadas no trabalho literário do passado, não foram em vão para traçar seus perfis
de agora.
FRANCISCO GUTEMBERG CARDOSO DE
OLIVEIRA
Na época, em que produziu os poemas que segue, o jovem Gutemberg
iniciava seus primeiros passos que o tronaria hoje em umas das figuras mais expressiva,
do jornalismo e do rádio paraibano. Foi um incentivador direto na concretização
do Primeiro Festival Interno de Poesias do Colégio Estadual de Cajazeiras e um dos participantes de
quase todas as versões do evento na cidade. Sobre os poemas editados no livro “Raízes
– Poesias” o jovem Gutemberg afirmou ao editor Luiz Alves: “fazer poesia pra
mim é uma maneira de dizer de forma artística aquilo que eu penso sobre as coisas
deste mundo tão conturbado”. E conclui: “Sempre aproveitei os festivais de
poesias para fazer sérias denúncias, principalmente contra a repressão e a
tortura, problemas muito sentidos pela juventude”.
COMO SORRIR?
Sim, como sorrir,
se no momento estou tão sério?
Sorrir,
se o time do custo de vida goleia a
salário de dez a zero?
Sorrir,
se ligo meu rádio e tem assalto,
sequestro e estou fazendo poluição?
Sorrir se alguém bate a porta
e pede uma esmola: “pelo amor de Deus
ajude teu irmão!”
Como sorrir,
se estou com uma dor corroedora no
meu estômago desabilitado?
Como sorrir,
se na rua só se fala em inflação,
crimes e futebol, e quando volto
encontro o coletivo lotado?
Mas sorrir, como,
se amanhã chega o cobrador insolente
e não tenho dinheiro.
Sorrir,
sorrir se meus filhos não me conhecem
mais,
pois saio às 4 e retorno às 12,
como um forasteiro.
Sorrir,
se o mundo está sobre ameaça da bomba
alertadora e de pavio curto.
Como sorrir,
se compro a pílula para minha mulher
assassinar nosso próprio filho?
Sorrir num mundo de crises:
do petróleo, da alimentação, da
inflação...
E doenças a matar.
E não consigo sorrir.
Enfrento a realidade, baixo a cabeça.
E vamos chorar?
Não.
Levanto a cabeça e vamos lutar.
HOJE
Hoje... É um dia qualquer
Hoje nasceu mais um ser
Hoje morreram crianças
Hoje rompeu-se um contrato de paz
Hoje foi praticado um aborto
Hoje no campo santo mais placas de
jaz
Hoje haverá teste de bomba
Hoje houve conflito radical
Hoje tem na prisão nove tipo de
tortura
Hoje o terremoto matou centenas
Hoje houve mais um defloramento
Hoje sequestraram o filho querido do
pai milionário
Hoje mais um disco voador foi visto
Hoje o camponês desmaiou de fome
Home, um homem na lua, outro em marte
Hoje se androgenou aquele que era homem
Amanhã ocorrerá o mesmo de ontem
Ontem os ocorridos de hoje os superam
E no futuro? Ah!... No futuro...
Cinzas! Cinzas! Cinzas! Nada mais.
FRANCISCO JOSÉ
No passado do subúrbio da vida
o filho da miséria surgia do relento
sul
seu mundo era o mundo
imundo ele vivia na classe do
descalço nu
Pelezinho da zona, tropeiro do
destino
não imaginava carreira tão curta,
ainda menino
no campeonato da vida, o jogo final
cede chagou,
em seu fadário infeliz que a mão da
sorte traçou
Na partida da partida, do desencontro
da dor
a voz sofrida do povo, o lança fatal
narrou
O pequeno penetra
no campo da vida
inocente nos lábios
barriga vazia
Zé buscava a bola
e o jogo corria
a maldade surgia
num lance covarde
penetra na área
aos vinte e um
da etapa mortal
atirou de cabeça
juiz não olhou
e agosto corria
e julho chorava
alguém reclamou
e o jogo parava
sem pena a cumpri
a saudade pagava
e no olho da rua
nas grades da vida
do mundo cadeia
está o culpado
que deixou jogado
no leito da rua
sem bola de meia
e no julgo precoce
do mundo dos maus
você não foi réu,
mais senti o tormento
do final julgamento
que não será lá no céu.
Poema em homenagem ao menor
Francisco José, assassinado nas proximidades do Estádio Higino Pires Ferreira,
quando tentava pular o muro para assistir uma partida de futebol. O poema foi
transformada em música e concorreu a um dos festivais da canção, realizados em
Cajazeiras
O PRISIONEIRO
E o mundo corre, e a vida passa...
Eu, eu calado.
seja no canto, seja no campo,
Não me perguntem, estou privado.
De repente me senti culpado,
fui vítima, covarde e herói.
mas descobrir sofrendo e vivendo
que alguém de fome morrendo, em mim
dói.
Burlei meu estômago, tapeei a
realidade,
camuflei irônica alegria
na magia, cotidiano da dura verdade.
Deitei fome, sonhei liberdade e
acordei prisão.
Deitei, porque estava fraco e
apático.
Sonhei... E como era boa a liberdade.
Acordei, não! Acordaram-me...
De súbito, olhei e já estava de mãos
juntas
injustamente, pois só tentei defender
um direito sagrado, que agora é
salgado.
No convívio quadrado: conselho,
ameaças,
tortura e opressão, e dizem eles:
pra sua recuperação.
Já marginalizado, a morte era o meu
último e maior desejo
E eu? magro, barbudo, olhos fundos
e já desfigurado.
Mas lá fora alguém esperava o cortejo
Novamente sonhei... e como era bom o
livre pensar,
o livre dizer...
Só que neste sonho eu não imaginei
que, sem fôlego, eu teria que
despertar
pra novamente dormir e nunca mais
acordar.
E partiu o herói que não temia
partir.
E o povo chorou, que antes não
conseguia rir.
No outro dia, ao romper da aurora da
triste manhã,
um pequeno garoto: roupas simples,
pés descalço,
um pacote de jornal à mão, corria de
um lado para outro
das ruas, com muita aflição:
Extra! Extra! Extra!
“Detento enforca-se misteriosamente
na prisão...”
Poesia classificada em primeiro lugar no II Festiva Estudantil Interno de Poesias, realizada em 1976 pelo Centro Cívico
Olavo Bilac do Colégio Estadual de Cajazeiras. Uma homenagem ao jornalista
Vladimir Herzog, assassinado em São Paulo em 1975, nos porões da ditadura,
durante a repressão.
NÓ
Assim que nascemos,
na barriga levamos um nó da parteira
Maria.
E se não morremos do primeiro,
de fome ou epidemia, e preciso
coragem
e ser forte para suportar os nós das
jornadas que afligem os fracos.
Pedro da fábrica:
na madrugada, na marmita, na lotação
e na hora extra
boia tua fria e nua nesta vida neste
nó.
José bem segurado:
na fila, na previdência, na doença,
geme curado pela assistência
burocrática.
Que nó, que agonia.
Os estudantes:
no quadro no libro, no limite, no
sete, na taxa, e no sete.
Com vendas, sem boca, sem poli, sem
tica com nó.
As crianças:
na rua, na cola, no lixo, na gang, os
gira-mundos
são raquíticos
dos conflitos do pobre contra a
pobreza.
Os poetas:
no pó, sol, no canto livre, estamos
no sol,
sem corda, sem dó,
apeiado na altura e altura dos
senhores sem dó.
Os vagabundos:
na procura, no concurso, na fila, com
dez, sem emprego,
mas se aperta o nó.
Chico do subúrbio:
no corpo, na cara, na cana, na lata,
no andaime, no biscate mergulho
tragável fugindo do nó.
João lavrador:
na terra, na cova inha,
na planta nua e a colheita é sempre
assim.
na distância do roçado é cada vez
mais pouco meu bocado.
Todos:
nó no pescoço, na perna, nas mãos,
nos olhos,
no nó e na consciência...
Você me desate esse nó!
Não pode... ah! Você também tem nó?
E você pode desatar este nó?
Não quer? Mas você também tem nó?
E você aí em cima, piedade, desate
estes nós!
Não me escuta, não é?
Haverá um dia em que todos os nós
farão um novelo
e no romper do novo dia,
em agonia eu hei de vê-lo.
“Nó”, em 1977, foi primeira
colocada no III Festival Estudantil de Poesias de Cajazeiras.
fonte: Raízes - Poesias
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