terça-feira, 30 de dezembro de 2025
Esperança Está Morta
A poética do amor atemporal em Chico Buarque
“Não se afobe, não / Que nada é pra já / O amor não tem pressa”. Chico começa aí a diferenciar o amor da paixão. A paixão é imediata, exige urgência, não sabe esperar. O amor, ao contrário, é paciente, resiste a tudo, inclusive ao tempo. Não adianta afobação: ele é sereno e perdura pela eternidade. A paixão relaciona-se ao desejo carnal; o amor, aos sentimentos da alma.
“Ele pode esperar em silêncio / Num fundo de armário / Na posta-restante / Milênios, milênios / No ar”. Os amores, mesmo não correspondidos ou não vividos em sua plenitude, não conseguem morrer. Perpetuam-se, ficam guardados, à espera de que, no futuro, possam ser utilizados. Sua realização pode ser adiada, mas permanecem vivos por milênios, enquanto não consumidos.
“E quem sabe, então / O Rio será / Alguma cidade submersa”. O compositor imagina o Rio de Janeiro, em tempos futuros, como uma cidade submersa, à semelhança da Atlântida, o continente perdido. Seus registros históricos ficariam debaixo d’água, intactos, preservados, à espera de pesquisadores dispostos a conhecer uma civilização desaparecida.
“Os escafandristas virão / Explorar sua casa / Seu quarto, suas coisas / Sua alma, desvãos”. A cidade isolada e mergulhada passará a ser explorada por escafandristas, que vasculharão tudo e penetrarão nos espaços da intimidade, onde o amor nasceu e germinou. Buscarão, nos recantos mais escondidos, vestígios da vida e da alma, tentando encontrar aquilo que não se materializou, mas permaneceu como expectativa: o amor.
“Sábios em vão / Tentarão decifrar / O eco de antigas palavras / Fragmentos de cartas, poemas / Mentiras, retratos / Vestígios de estranha civilização”. Por mais que tentem compreender, não conseguirão encontrar respostas. Seremos, para eles, uma civilização desconhecida, estranha. Os documentos narram histórias que não conseguem decifrar. Tudo se transforma em enigma indecifrável.
“Não se afobe, não / Que nada é pra já / Amores serão sempre amáveis”. A precipitação é desnecessária, porque o amor, mesmo não vivido no tempo desejado, encontrará seu destino no momento oportuno. Se hoje não se efetiva, talvez daqui a milhões de anos seja alcançado e vivido por outro. O amor existe para ser exercido, vivido e aproveitado, ainda que em épocas distantes. “Amores serão sempre amáveis”: não se perdem com o passar dos anos.
“Futuros amantes, quiçá / Se amarão sem saber / Com o amor que eu um dia / Deixei pra você”. Quem sabe, diz o eu lírico, o amor deixado em reserva — não correspondido, mas intacto em sua essência —, ofertado à pessoa amada em vida, seja vivido por outrem no futuro, sem que este perceba tratar-se de uma herança afetiva recebida.
quarta-feira, 24 de dezembro de 2025
A Região Oeste da Paraíba Ganha Importante Teatro
sexta-feira, 19 de dezembro de 2025
No tempo em que fui a São Paulo
No final da primeira metade dos anos 1980, o Brasil ensaiava a própria respiração depois de anos de silêncio imposto. Faltava liberdade e mais realce na vida de todos nós. A ditadura nesse casa, ainda rondava querendo resistir, mas já não assustava tanto como antes; havia fissuras no concreto armado, duro do regime militar, e por elas escapavam, mesmo sem a total liberdade que todos queriam, desejos, rebeldias, músicas - começava aperecer as primeiras fagulhas do rock nacional - caras pintadas e muito gente jovem nas ruas.
quinta-feira, 11 de dezembro de 2025
O Lugar da Fé nas Casas do Sertão
Ao revisitar minhas memórias de infância no Alto Sertão da
Paraíba - entre Catolé do Rocha, o Pilar e o Cajueiro - descubro que a
religiosidade nunca foi para mim uma doutrina, mas um ambiente. Ela se
apresentava não como discurso, mas como presença silenciosa, especialmente nas
casas simples da zona rural, onde quase sempre havia um quadro do Sagrado
Coração de Jesus pendurado na parede principal. Aquela moldura oval envelhecida
parecia fazer parte da própria arquitetura emocional da casa.
Essas imagens não eram apenas objetos decorativos:
funcionavam como uma espécie de eixo espiritual da família. As rezas, as
promessas, os velórios, os encontros, tudo ocorria sob o olhar daquela figura
que, para mim, menino, emitia um mistério difícil de traduzir. Esse mistério
não estava no dogma em si, mas na forma como as pessoas acreditavam, no modo
como a fé organizava o cotidiano e oferecia uma dignidade silenciosa a vidas
tão marcadas por desafios.
Nas caminhadas com meu pai pelos sítios, aprendi a observar
essa relação entre imagem e existência. Meus avós, tanto do lado paterno quanto
materno, tinham uma devoção naturalizada, que não se impunha, apenas irradiava.
Havia ali uma ética da fé - discreta, forte, sem necessidade de explicações. E
mesmo quando, anos depois, me declarei ateu, nunca deixei de respeitar
profundamente essa forma de acreditar. Talvez porque eu soubesse que ela
abrigava algo essencial: uma maneira de enfrentar a vida com coragem, sentido e
esperança.
Nos últimos dez anos, minha própria visão de Deus se
transformou. Hoje não dependo de sistemas dogmáticos nem de fronteiras
religiosas. A ideia de Deus que me acompanha é mais ampla, mais ligada ao
humano, ao natural, ao que existe de melhor no gesto e na convivência. Cristo,
por sua vez, permanece para mim como uma figura central na história da
humanidade - não pela imposição religiosa, mas pelo exemplo ético. Uma síntese
de dignidade, cuidado, transformação e amor ativo.
É curioso perceber como, ao adquirir recentemente uma
fotografia antiga do Sagrado Coração - semelhante àquelas que marcaram minha
infância - reencontrei não apenas um objeto, mas um elo. Um elo entre a
simplicidade das casas sertanejas, a espiritualidade popular e meu próprio
percurso interior. E compreendi que certas imagens não nos abandonam: elas
permanecem porque guardam um significado que evolui conosco.
Não se trata mais de devoção no sentido tradicional. É reconhecimento. É memória. É a certeza de que, no fundo, toda fé - seja ela qual for - expressa um desejo humano legítimo: o desejo de transformar a si mesmo e o mundo ao redor. E isso, parceiro, continua sendo tão necessário quanto naquela parede antiga de barro.
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sábado, 29 de novembro de 2025
CONVERSAS DE CINE ÉDEN: A Luz do Apollo Sobre Dom Zacarias e o Cinema de Cajazeiras
As boas intenções, costumam florescer em um determinado lugar, quando se tem por trás delas pessoas iluminadas, provocadoras de atitudes positivas. A esse respeito, conclama a oralidade, que a história de certas cidades pode apresentar diferentes versões sobre o seu nascimento. No caso de Cajazeiras, o que todos sabem é que ela nasceu a partir de uma escola. Essa é a versão oficial.
Contudo, há cidades por aí a fora cujas origens de suas histórias podem revelar duas versões. Uma, a de que surgiram simplesmente das primeiras alvenarias fincadas no seu chão, que foram erguidas com suas ruas e edificações; a outra, vinda do imaginário popular, conta que simplesmente nasceram sob uma luz que um dia as atravessaram, deixando um feitiço e um brilho intenso em seus solos.
Não sei se Cajazeiras foi tocada por esse romantismo barato. Mas, baseado nesse ponto de vista, a cidade teve de fato, o privilégio raro de renascer pela luz que escapava das janelas estreitas de três salas de cinema - mais especificamente de duas: o Cine Teatro Apolo XI e o Cine Teatro Pax, ambos foram sonhados, erguidos e guardados com o zelo de um pai por seu filho mais querido. Nesse caso, o pai, era o sensível bispo Dom Zacarias Rolim de Moura, um homem que dividia com sabedoria o coração entre o púlpito e o projetor; ou seja, a vocação eclesiástica e a paixão pelo cinema. Essa dualidade do bem, o fez dele um bispo cinéfilo que ousou construir não apenas igrejas, mas ‘cinemões’ no centro do sertão paraibano.
Algumas pessoas, principalmente as mais próximas, costumava dizer que Dom Zacarias tinha uma alma inquieta - dessas que não cabem só nas obrigações episcopais. Era bispo, sim; disciplinado, também; dedicado à fé e um homem de oração, decerto. Mas havia nele uma pulsação voraz de menino: o encantamento pelas histórias projetadas nas grandes telas de cinema.
Essa atração talvez viesse de muito longe. De duas cidades do vizinho estado do Ceará; Umari e Iguatu ou de alguma tarde perdida em que ele, então adolescente, viu pela primeira vez o milagre de uma luz tremida transformando-se em rostos, aventuras e paisagens. Seja como for, essa fagulha ficou nele, ardendo silenciosa até o dia em que, finalmente se tornou chama.
Quando assumiu a diocese de Cajazeiras, muitos, sob a ótica da tradição, esperavam dele as obras características de um bispado: escolas, centros educacionais, presença cativa nas festas religiosas, pregações e peregrinações pelas paróquias da diocese, além de uma participação destacada na vida social da cidade. Tudo isso ele fez. Mas ninguém imaginava que, naquela mente, que caminhava sempre três passos adiante, germinava a ideia de instalar dois cinemas comerciais, estruturados com ambição das grandes salas que haviam na capital, mas fincados no coração de Cajazeiras.
Das duas salas instaladas, a sua joia rara, o Cine Teatro Apolo XI. O nome, por si só, já anunciava que Dom Zacarias não era de pensar pequeno: o cinema fazia parte de um complexo de comunicação arrojado, montado em um prédio moderno para os padrões da época e dotado com equipamentos de última geração. O empreendimento incluía uma emissora de rádio - a Rádio Alto Piranhas - e um cinema, o Cine Teatro Apolo XI.
No caso do Apolo XI, a sala apresentava fachada imponente, cabine de projeção ampla, com ar-condicionado gelado como uma noite de inverno no hemisfério sul. Fincado no piso, havia dois projetores enormes e lustrosos da melhor marca que havia na época, que davam orgulho só de olhar. A sua tela panorâmica se destacava pela amplitude retangular, enquanto o auditório espaçoso, com camarotes no seu mezanino, lembrava a imponência dos cines-teatros dos grandes centros urbanos.
Havia ainda no auditório, uma cadeira cativa. A mais vazia de todas as cadeiras lotadas. Aquela cadeira que ninguém ousava ocupar, nem por engano. O cinema podia estar abarrotado, gente sentada até no chão; encostada nas paredes laterais ou entrando ainda sob o tremor da fila - e lá estava ela: livre, esperando o bispo. Era como se o próprio Apolo ficasse em silêncio diante dela, aguardando a autoridade de quem lhe dera o sopro de vida.
Os frequentadores do Cine Teatro Apolo XI sabiam que, quando estreava um filme novo, Dom Zacarias vinha certeiro no primeiro dia de exibição. Ele era pontual, vinha ver o filme, como quem cumpre um ritual sagrado. Chegava discreto, mas sua entrada tinha o efeito de apagar murmúrios. Sentava-se no assento proibido e, quando a luz da cabine acendia pela fresta, o cinema inteiro parecia respirar com mais calma.
Mas o religioso não vivia apenas para o seu cinema preferido. No outro extremo da cidade, na direção sudoeste, ele criou o Cine Teatro Pax, com as instalações mais popular. O Pax tinha características ruidoso pela ação da euforia das crianças nas sessões das tardes de domingo. O cinema era um lugar vivo e frenético que pulsava ainda mais durante as aventuras de Peter Pan.
Edificado no antigo prédio carmelita, o Cine Pax recebia os apaixonados por cinema da zona sul: os meninos curiosos, os casais enamorados e todos aqueles que buscavam a diversão pura. Ali, fora a programação da noturna, o cinema exibia nas matinês de domingo à tarde os filmes de aventura, os faroestes, os principais desenhos da Disney e as produções de Mazzaropi - clássicos que marcaram a infância de sucessivas gerações.
A sala do Pax era menor do que a do Apolo XI, com uma cabine projeção apertada, desconfortável muito quente e abafada. Diferente do Cine Apolo XI, não havia ar – condicionado; apenas um pequeno ventilador ajudava amenizar o calor sobre os projetores e os operadores. Mas o Pax era o point de todos nós e suas acomodações - embora improvisadas, adaptadas e sem muito conforto - praticamente não eram sentidas pelos frequentadores.
O afeiçoado Dom Zacarias conhecia seu público como um dono de circo conhece a alma da plateia. Todo fim de mês viajava no ônibus da Viação Gaivota, rumo a Veneza Brasileira - Recife. Ao chegar, percorria pacientemente as distribuidoras de filmes da capital pernambucana, observando catálogos e lendo sinopses, escolhendo a dedo os títulos que melhor adequassem à programação de seus cinemas e ao perfil dos seus frequentadores. Em seguida, assinava os contratos de locação com essas empresas, definindo com cuidado o que Cajazeiras assistiria nas próximas semanas. Era assim, uma das partes da rotina do nosso bispo cinéfilo.
Dos muitos momentos, que a convite de Cícero Alves, atravessei o corredor silencioso do Palácio Episcopal para chegar ao gabinete de Dom Zacarias, vi ali um homem que parecia estar mais centrado nas atividades dos dois cinemas do que nas suas obrigações primarias de líder religioso, responsável pela orientação de seus paroquianos. Esse comportamento ficava evidente quando pessoas da diocese chegavam ao seu birô. A atenção às demandas dos cinemas, trazidas por Cícero, o bispo escutava com mais alma e cuidado, olhava com interesse e respondia com mais ênfase e celeridade. No entanto, essa atitude não parecia se repetir quando outras questões estritamente ligadas ao seu bispado eram trazidas por representantes do clero.
Em seu tempo, sendo uma fração no mundo seleto dos exibidores, o Bispo não se curvou às modas do mercado cinematográfico. Naquele período, quando o Brasil, por exemplo, mergulhou na era das pornochanchadas, cinemas de norte ao sul do país, apelaram a esse tipo de bilheteria para sobreviver. Ele - firme, silencioso e convicto - recusou. Não por um moralismo agressivo ou por conservadorismo provinciano, mas porque acreditava na dignidade do cinema, na força que a sétima arte possuía para educar, instruir e maravilhar as pessoas. O que Dom Zacarias fez foi segurar com cautela o fantasma da crise que se avizinhava; aguentou até onde pode.
Quando viu
a situação piorar de vez, com a onda dos filmes pornôs engolindo quase todas as
salas de cinema, ou seja, percebendo que esse gênero já tomava conta das
telonas no país todo, preferiu
fechar suas salas a empurrar de goela abaixo no seu público um tipo de filme
que, segundo ele, era o fim dos cinemas e não acrescentava nada aos seus fiéis
expectadores
Assim, guiado por esse ponto de vista, os seus cinemas silenciaram. Não por falência, mas por fidelidade a um princípio. E o que ficou? Ficou a lembrança. Ficou a luz. Ficou o gesto de um homem que, no sertão profundo da Paraíba, recusou-se a tratar a cultura como lixo, mas ousou e provou que cultura também não era luxo - e sim, uma necessidade na vida.
As lembranças dos seus cinemas ficaram guardadas no eco das sessões lotadas e no silencia da sua cadeira cativa - vazia. Permaneceram no cheiro das fitas novas de cada filme que chegava; nas risadas altas dos desenhos exibidos no Cine Pax. Tudo isso, ficou evidente na memória de um tempo em que Cajazeiras possuía, graças a um bispo apaixonado por imagens em movimento, duas janelas para o mundo.
Dom Zacarias não instalou apenas 'salas educativas', nem tão pouco 'cinemas paroquiais' - daqueles fincados em uma sala qualquer de uma unidade eclesiástica, destinada ao doutrinamento de religiosos da sua diocese. Eram cinemas de verdade: grandiosos e ambiciosos espaços de exibições comerciais - e ainda assim, guiados por um coração que conhecia mais de humanidade do que de lucro.
E talvez seja essa a imagem final que melhor o define: um bispo que, entre as ‘liturgias das palavras’ e os projetores, construiu para seu povo não apenas espaços para a oração, mas templos de imaginação e magia. Um homem que acreditou que Deus também morava na luz que atravessa a escuridão - inclusive na luz de um filme recém-projetado sobre o mormaço de uma noite quente, como sempre foram as noites em Cajazeiras.









